ditado

foto Denis Buchel


Não quero esta solidão. Nenhum poema que escreva ou leia consegue contradizer a circunstância de isto não ter mais pernas para andar. Não mexe já, sequer, ainda que haja resolução, por magia de um ânimo saído não sei de que ingénuo pensamento, lutando contra sombras e uns vestígios de qualquer outra coisa, insinuando um ponto e vírgula ente mim e a fadiga. Sobram nisso, entretanto, muitos espaços. Ou, colocando os óculos: ah!, afinal são páginas em branco. 

Quero ver os mortos levados pela chuva, a fazer contas à raiz dos seus ossos em lama, nariz em pingo, caído. Olhos como bocas de fome, dentes em sorriso de um entretanto não imaginado, direi que nem sequer consentido, mas no sentido de confirmar que o negro é, de facto, tão mais belo que a puta da vida. Nem mais: fodam-se as estrelas e o seu opaco reflexo no meu olhar, que se desvia do prolixo cliché abundante em tantas vozes. 

Podemos ir orientando-nos pelo consolo que vem oferecendo a finda tarde ajoelhada perante a noite galgando pelo relógio o seu espectro arrastado de leste, após o cerco das serras. Só não quero ser eu a espalhar a cinza que manchará as planícies abandonadas à condição daninha das ervas e ainda dos resistentes insectos de invernia moribundos. 

Não quero nada esta solidão. Não esta em concreto, que tanto se demora, vestindo os dias com a fatiota dos séculos. Tem muitas sombras, mas nenhuma de um qualquer consolo. Nasceu néscia por tantos vazios desnecessários. Mesmo que ensaiando qualquer pipeta de luz, será apenas um ruído interior por não saber tirar alguém desta modorra. Jaz nela ainda a multidão que ansiei e não tive oportunidade de conhecer. 

Ora essa, ó silêncio sem eco, que vem a ser isso da verborreia pintada por parábolas? Instala-te sem escárnio, e deixa que se sofra do murmúrio ausente! Chove já, e vou atender ao sangue que cai nas ruas, contradizendo tudo e o quanto a humanidade jura ver sorrindo. E que só por tal motivo se arvora no compromisso de se insinuar viva e ditar vida em seu redor. 

Morte com este silêncio assim não tem motivo. Morte deve ser estridência, jogo de química, neve, calor, acidez e calcário, caldo das sementes vindouras. Por que cantas assim, ó melro? Assobias a tarde rendida como se quisesses prolongar ainda mais a ironia de encaminharmos a esperança para o abismo… Visto o meu casaco preto, tão solene, a imitar-te a nobreza que carregas nas tuas penas e plumas, no teu voo insidioso, entre as silvas. Ergo o olhar acima desse mato onde perdi a vista do teu bico amarelo, e saio sem promessa de voltar.




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