atrevimento

foto por Ricardo Amador


Atrevo-me

(ainda que as palavras possam vir a morrer)

a encostar o meu ombro ao teu e seguir, nesta ansiosa imperfeição, a mesma lonjura traçada pelo teu olhar onde te cativas de uma qualquer memória que não sei decifrar: que tempo evoca, que espaço percorre, quais os cheiros e os sabores, se no toque tens a suavidade da seda ou a aspereza da rocha sedimentada.

Atrevo-me

(ainda que os fonemas pereçam condenados de efemeridade na nascente dos lábios)

a uma pueril tentativa de procurar de leve a linha das tuas mãos repousadas em teu colo, nesse mesmo abandono, esperando trazer-te de volta, a entenderes o signo do que está aqui engendrando o acaso da nossa provável cumplicidade.

Atrevo-me, pois, no piano, no poema, no aroma do morango tomado ainda quente da terra, num gole de vinho, numa peculiar brisa, no risco de uma ave atravessada no azul da abóboda. Coisas simples, aleatórias, sem procurar lugares-comuns, apenas o comum lugar de te encontrar, de te devolver ao momento comigo.

( - Há algo que me irrita…
- O que é?
- Esquece, terá passado…)

Atrever-me-ia à delícia de um beijo, tocar o teu peito com o meu, no concreto de um abraço apertado e pluralmente de tudo sentido. Seria, porém, tão fora deste contexto que temo se perderia a minúcia do encantamento da primeira vez

(de tudo).

E, por isso, ocupo-me, em vez de empolar de desejo, a pintar palavras, a compor fonemas, e a dizer de cor a forma dos teus dedos mais a carnuda sedução das tuas palmas. De quantos pintores desejariam esse olhar para colocar nas suas telas.

Se não for isto assim, pouca probabilidade haverá de outra coisa ser, nessa incógnita de um qualquer dia, circundado de camadas e camadas de acasos a advir num possível futuro

(por ora tão abstracto)

em que possamos então remontar às memórias partilhadas dos primeiros momentos, recordando esse passado que ainda é só e apenas hoje, este aqui, com o teu olhar na lonjura, cativado por não sei que imagens e sentimentos.

Concede-me um pouco de alegria, a ser fruto maduro do quanto me atrevo por ti.



~*~*~*~




Comentários

delírios mais velados