sal do pão

foto de Zan Zibovsky


Eu poderia ter escrito, sem mestria ou delonga, um poema de amor. Desses, como se fossem catálogo de agente turístico, na representação de um qualquer jardim da cidade onde os amantes se encontram para aliviar a fome a e a sede dos desejos.

Seria um destes poemas, cismados na ponta de dedos apressados, tão adjectivos, condicionados pelos lábios que desejassem acolhê-los, pelos braços que sofregamente os quisessem beijar. 

E eu diria qualquer coisa comum como a lamentar a corrida de e contra o tempo, e aos ouvidos alheios que anseiam decifrar segredos, com qualquer epifania ao estilo romanesco. Por exemplo: 

- Nós somos, os outros só nos pensam. 

Com as pálpebras cerradas pela solene nobreza de espírito, a erguer a sobrancelha com uma moral soberana, interrompendo opinião contrária com mão altiva como os antigos e ultrapassados sinaleiros de trânsito: 

- O nosso amor é puro, por incompreendido 

(e um teatral punho sobre o peito, a angústia deliberadamente evocada como que entidade espectral). 

Oh, se não fosse tão trovadoresca esta faceta de ignota confissão dos amores exacerbados... Usam a poesia com altruísmo, como lençol branco que nenhuma virgem algum dia possa ousar tingir! 

A questão essencial, meu amor, é essa falta de sal, e a tão já vulgar vocação romântica para desmaios e pálidas faces quando, o que desde sempre interessou e terá sido o cerne dos devaneios romanceados, é a falta efectiva do falo que do altar ronque com voz medonha na imitação do rei soberano como deus. 

Cá por mim, descendente humilde 

(por vezes humilhado) 

da lama humana e desinteressada da agreste confusão das emoções em êxtase, depende da forma sonsa ou enérgica com que me ergo do leito pela manhã: haja café e biscoitos, água como os abraços sempre; beijos como o pão, incondicional. Mas, ó amor meu, quando te rendes à carne por mim hasteada como bandeira, é sempre importante que esse pão seja de suor e de sal amassados, até à sua cozedura, temperamental sempre, nessa espuma de raiva, razão, ciúme e saliva cuspida. O sal do pão, amor selvagem, é o puro pão que sacia e acorda a alma. O que está a mais são apenas palavras, não o sumo das veias.

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