obsoleto



Sabes bem que é obsoleto ainda acreditar, sequer pensar, na redenção humana. Percebes que dizer isto é quase como um qualquer lugar-comum, um cliché. Nada de novo, é o facto: cinco segundos apenas de razoabilidade e a angústia de constatar a sua verdade. Inequívoca. Somos a prova disso. 

Mesmo assim, a haver essa possibilidade do passo seguinte, qual será 

(seria) 

então? Viemos sempre com a resposta na ponta da língua, na forma única e repetida: esperar. Mas, esperar significa o quê? Dar um passo em frente, recuar, ou de total e irónica imobilidade? Como quando o medo nos petrifica, ainda que irracionalmente, apenas movidos pelo sumário instinto da sobrevivência? Pergunta e retórica. 

Decide tu isso do passo à frente, atrás, ou sem passo algum. Sabes, tenho pão no forno, não quero que se queime. Basta a fome. Insidioso seria alimentar a esperança com pão negro, tóxico. Ainda que nada se mova. Ainda que nem um milésimo de milímetro nada se mova e tudo permaneça estático. Há aquela garrafa de velho vinho que foi antes de nós e, continuando selada, passará muito além de nós e do que nos vingará. Um legado, se assim preferires entender. 

Se há ainda espaço para um rumor de comemoração 

(sei lá eu que palavra melhor… brinde?... despedida solene?... arrefecimento nocturno ou… sede?) 

faz-me saber. Não contes, porém, com mais alguém para essa celebração, 

(enfim a palavra correcta?) 

seremos apenas nós dois. Deus é uma figura de estilo, feita à nossa imagem e semelhança, lembras-te? 

Vingaremos, assim, como o diabo: a confundir a verdade com a mentira. Assimetricamente. Abre a mão. Tenho um ferro em brasa para que o apertes como se fosse a salvação e o consolo de um abraço meu. O planeta gira, não vai parar por nós nem pelos nossos semelhantes. Haverá sempre um novo dia, nova noite, equinócios e solstícios. Eu e tu, nós, apenas obedecemos à nossa equívoca e instável vontade. 

Cumprir a humanidade seria a palavra de ordem… Desculpa: já não temos palavras de ordem para as entoar na rua. Verifica como o grão de milho se transformou: vai tomar a vida, tirar proveito do dia, da noite, dos equinócios e, enfim, desse solstício que o transformará num amanhã. 

A vontade humana é uma incerteza. Dirás arquétipo? Talvez. Porém, agora? Oh!, tão obsoleto é dizê-lo, não fossem os séculos. É que foi muito tempo para aprender, entendes?, e o que fizemos foi ir revirando os olhos, fazendo de conta de não ver, assobiando para o lado. 

Cheira a morango aqui. Quero permanecer assim, com o afecto feito no olfacto de sangue a sugerir que essa esperança expira bastante tempo após o último fôlego. Vai-te, e deixa a tarde enfim acontecer.

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