poema-sujo: crónica de uma madrugada

Nicolas Gavino via Absolution


Sentado ainda sobre o que é a clareira da mesa, num espesso assombro de nada, a escassa luz transforma o que fora visível num amontoado volume de espectros. É uma valente merda, isto de ser ir vivendo por viver. Ninguém se importa seja com o que for, a saber: as Mulheres, os Amigos, a Nobre Família. Tudo se some se deixas de ser, e quando não sobra nada mais do que já foste. Vou abraçar a noite por essas ruas e estradas. Quero ir e não voltar. Menos dó. Menos pena. E menos culpa. Não quero outra condição senão virado para dentro de mim, agora que posso, finalmente, mergulhar no mais profundo egoísmo. Não regresso. Só quero que pare de doer, por que insiste isto em doer? 

Estugo as passadas entre o frio da noite, no ar húmido. As solas dos meus sapatos não me isolam os pés desta humidade, alguns metros adiante sinto já os dedos gelados, subindo constante para as pernas, das extremidades para o interior, o tronco começando a estremecer. Não faz caso a razão de qualquer condição do corpo, se é a alma quem vai no comando, no desejo dos contrários, na sede dos castigos 

(amanhã prometo o jejum) 

e a noite foi escolhida para ser reconciliadora. Carne e espírito em evidente simbiose. Não pode o frio vencer, não posso deixar que me derrotem as sombras que me perseguem.


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