segunda redenção




Foi capaz de dobrar o espelho, e ficou do lado de lá 

(pensando que para sempre) 

longe de tudo o quanto a assustava na vida aquém espelho. 

Tornei a vê-la, já doente, numa esquina de luz onde dormia a imagem rachada do vidro. Nunca se lembrou que, por ser de vidro, a sua vida ali também se quebraria. Ela veio até mim, trazendo um molho de chaves, e disse: 

- Toma a que achares que vai abrir. 

- Abrir o quê?, indaguei, sem ter esboçado qualquer gesto que adivinhasse a curiosidade que me invadiu naquele momento. 

- Tu o saberás, respondeu-me, serena. 

Ficamos uns instantes a olhar um para o outro. O que me poderia interessar numa chave daquele molho estendido pela mão de uma estranha? Apesar de tudo, a minha curiosidade era cada vez maior pelo que viesse a ser tudo aquilo e porquê eu, porquê ela. Porquê chaves. 

- Escolhes uma?, insistiu. 

- Prefiro as portas já abertas, respondi por fim, muito convicto. 

Murou-me o horizonte com o rosto que aproximou num repente de mim, e os seus lábios entreabriram-se. Mas eram os meus olhos que afastavam a sombra da madrugada e afogando com a realidade a incógnita de um sonho. 

Se tivesse deixado a porta aberta, teria saído. E descoberto fronteiras impossíveis. Teria talvez, para além de tudo – o amor, a religião, o poder, a luxúria, a filosofia, a miséria, a morte – vivido. 

Uma porta fechada é uma solidão escura. 

Às sete horas da manhã, o sino badalou para anunciar existência ao mundo e em particular a este quarto escuro, onde poros rejeitam a parição da aurora. Badalou vezes sem conta o sino ou conta que não quis eu fazer, a sentir que me chamava, e eu sem nada dever à manhã porque deixei de me interessar, a querer-me morto agora, concluindo as horas que faltam para o render da tarde. Não estou, não vou saber de nada e o quarto continuará poroso e negro. 

Sinto o frio na vez das agulhas no antebraço nodoso, o suor a escorrer pelo corpo convulso. Este esconso sacudido pelo bolor onde a ténue luz espreita pelas frinchas que as traças vão deixando. Deixo-me sinceramente ao fogo que me lambe de morte prematura, a ouvir-lhe o murmúrio da crepitação: 

- Consome-te!

Comentários

bluegirl disse…
Tão belo e poético!

delírios mais velados