requiem



Ilumino o quarto com os dois abajurs, um em cada mesinha de cabeceira, enquanto o frio lá fora principia a enrijecer os músculos e os ossos, e todo o meu corpo estremece como se de um medo se tratasse. Os automóveis passam disfarçados pelo nevoeiro que avança, todos eles oferecendo um conforto quente, um aconchego, como uma lareira crepitando e dois copos de vinho, adequados ao brilho de uma vela enquanto dois corpos avançam no seu encontro íntimo, e todo o calor do ambiente já é quase só dos corpos e pouco da lareira, nem dos carros que passam, abrindo o nevoeiro que já se adensa, e os faróis sinalizando a máquina a ameaçar nas curvas, quando duas mulheres que passam distraídas se acautelam 

- Cuidado com o carro! 

Estava eu a dizer, o meu quarto iluminado por dois abajurs, a minha cama tão enorme para um velho menino como eu, entregue à lentidão morna, quase fria, deva dizer, da solidão; eu tão pequeno, querendo o afecto da minha mãe 

- Doem-me os ossos 

querendo o afecto da minha mulher 

- Deixei de gostar de ti 

querendo o teu afecto 

- Não deixo o meu homem por nada 

e lá me meto entre os lençóis, abrigo os meus pés no conforto de um saco de água quente que todas as noites a minha velha mãe me coloca na cama como se de um beijo de boas noites se tratasse e, contudo, 

- Doem-me os ossos. 

Vejo a disposição do meu quarto, os móveis quietos presenciando a minha solidão, as roupas que atirei na cadeira, a televisão muda, o telemóvel pousado a vibrar de notificações, como se um velho resmungando de reumatismo 

- Doem-me os ossos 

e lá fora os carros de ares condicionados ligados abrindo o nevoeiro, troçando do frio que se faz no exterior, as duas mulheres passam distraídas e ao verem o farol como uma fera 

- Cuidado com o carro! 

Eu estou como se sobrasse no mundo, deitado na cama, iluminado por dois abajurs, de auscultadores enfiados nas orelhas, de chávena de leite arrefecendo na mesinha ao meu lado esquerdo e tu o pequeno papel com a tua letra lá inscrita na vez de uma fotografia; respiro fundo, ou suspiro, os suspiros que os homens de certa idade vão esquecendo; eu agora regredindo trinta e cinco anos, voltando à ansiedade da adolescência e tu a teimar, a martelar na minha cabeça, 

- Não deixo o meu homem por nada 

e eu sei lá quem o teu homem é, só sei de mim e dos teus olhos; eu sei ver todo o universo nos teus olhos, e um mar de conquistas, com bartolomeus dias, vascos da gama, dom sebastião mais quintos impérios e tudo nos teus longos cabelos; as horas passam, a minha mãe remexendo-se na cama num sussurro de 

- Doem-me os ossos 

e a mim dói-me a alegria por voltar a sentir a paixão que julgava perdida pela idade, com a realidade assinalando 

- Não deixo o meu homem por nada 

a doer-me por voltar a sentir-me feliz e tu indiferente, a suspirar de novo e tu só bocejos, a sonhar de novo e tu caída no sono. Tu, nesse verão já tão distante, a dizer-me no papel 

- As metas de hoje são barreiras ultrapassadas amanhã. 

A minha mulher que me deixou, num semblante cruel e frio, 

- Deixei de gostar de ti 

frio como o nevoeiro lá fora, a minha mulher que se julga agora dentro do automóvel que rompe o nevoeiro, julgando-se toda ela confortável devido aos ares condicionados, enquanto eu, a espreitar o farol surgindo do meio da neblina e a avisar, como duas mulheres distraídas que passam 

- Cuidado com o carro! 

E, no entanto, cá me encontro, suspirando, fingindo o teu retrato na tua letra inscrita num papel, sorvo os primeiros goles de leite e aconchego os pés no beijo de boas-noites que a minha mãe veio repousar na minha cama. Esta música que te traz de corpo inteiro aos meus ouvidos, consigo ver-te finalmente sorrindo em cada acorde, e todo o teu jeito de mulher ingénua, todo o teu corpo como uma dança mágica, imagino os teus cabelos soltos abrindo brisas de maio no meu quarto 

- Não deixo o meu homem por nada 

a recordar o beijo de despedida que te dei na face, a afagar-te o rosto como se fosses uma menina perdida, 

- Até amanhã 

quando perdido segui eu, que deveria ter recebido o beijo e o afago que te dei, de que tanto necessito, e os meus olhos a brotarem lágrimas que se sustiveram, lágrimas não sei se pelo que sinto, lágrimas não sei se por ti ou por mim que sofro por voltar a sentir-me feliz, apaixonado, sem ter que ouvir 

- Deixei de gostar de ti 

mas também sem necessidade alguma de ouvir 

- Não troco o meu homem por nada.

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