alfena



Pouco me preocupa o render do equinócio e os dias que se adivinham mais frios. A evidente e rápida inclinação da tarde para noites mais longas tornando os corpos lassos e apelando ao apetite quase verbal do sono. Vou sem ti, nesta disposição, para parte incerta 

(para lado nenhum?) 

enquanto resistem os penúltimos e tardios movimentos estivais na cidade, procurando um copo que me afaste ainda da sombra da solidão que está aí não tarda no meu encalço, presente nos meus gestos inclinados, à laia de caçador furtivo, para finalmente me emboscar quando menos esperar 

(claro que espero, já sei de cor o) 

nessa hora de maior fraqueza que há-de vir, e tomar-me, por inteiro, enjaulado ou empalhado até que o inverno se cumpra e, quando cansado ou morto, começando a soltar-me então, acordando o meu corpo para os hormonais apetites primaveris 

(já sei de cor o ciclo de sombra e luz de que sou feito, como se eu calendário ambulante das estações, apontando a lua ideal das sementeiras e o humor propício às colheitas). 

Para já resisto no meio termo de tudo, longe da cor alfena dos teus olhos, aguardando o aconchego patético da minha hibernação para o que é a vida, sempre adiando decisivas resoluções e com os anos pesando em cima, convencido que o dia há-de chegar finalmente para que tudo se concretize, e eu rejuvenescido, sem encarar os espelhos, ignorando num sacudir de ombros os sinais cada vez mais inequívocos da idade que avança. 

Sigo por esta cidade, despreocupado com o rumo que tomo, sem ti, mas com a memória no manto negro e sedoso dos teus cabelos, a sugerir-me o quente aconchego do teu colo, contra o restolhar das folhas das árvores há muito caindo na sua madura condição, arrastadas sob o vento que se levanta, cada dia mais frio, a arranhar o chão. 

Tu ficarás quieta, sorrindo 

(tu quieta uma pessoa, tu sorrindo uma outra que não tu quando quieta) 

sorrindo ao que tens de anos pela frente, sem te preocupares que uma prega na pele, que uma articulação teimosa ao descer da cama, que um cabelo branco, que o sono rejeitando a vontade de adiar o fim dos dias, 

(tu duas pessoas, a que poderias ser se me esperasses e a que és e hás-de ser ignorando as expectativas de mim), 

tu quieta e impressionada com o que eu possa representar, que talvez a idade afinal nenhum limite, a conjecturares cenários, e os obstáculos sempre em evidência em qualquer e cada um deles, muito embora o amor 

(é o que se diz, o que se ouve falar muitas vezes) 

o amor razão principal e mais forte, e que acontece contra tudo e todos, o amor como o velho louco de la mancha aniquilando monstros de braços estendidos consoante a maré dos ventos. É verdade, o amor acontece, e parece tanto o título lamechas de um filme a que se assiste na tarde de um sábado invernoso, enquanto a chuva fustiga a paisagem para lá da janela tolhida de cinzento. 

Não me preocupa nada que os relógios venham encurtar os dias e que a escuridão avance. Bebo, por enquanto, neste copo balão algo que evite o esfriar das veias e das extremidades dos membros, sentado numa esplanada desarrumada, não totalmente deserta porque ainda o ruído da mesa no canto oposto e sei, sem fazer alarme, que a solidão me assaltou 

(afinal quando menos esperava) 

como demónio escarninho, cruz que vou carregando daqui por diante durante meses, ou 

(sendo a esperança essa que teima em ser a última a finar-se) 

que os bagos de alfena dos teus olhos, mais o misterioso manto negro dos teus longos cabelos me amenize os ombros com promessas de 

(a idade, as pregas da pele, as articulações em gritos, os cabelos esbranquiçando) 

com promessas de ter o sono velado pela tua voz jovem, rouca e quente, a assegurar-me 

- Vai passar. Tu sabes que vai passar.

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