nós
Sandra Geinsweid |
Por favor não te enfades por insistir desta forma. Tens que acreditar na possibilidade entre nós, e digo nós porque a palavra parece que se impõe, podia dizer eu e tu, mas não, é nós que aparece, eu a tentar corrigir e o teclado obstinado num tom meio amuado, não me deixa traçar as letras do eu e tu, quer apenas nós, quer-nos.
Olho pela janela e o crepúsculo volátil gira, atordoando-me, concede-me pausas de meros minutos, e recomeça, mansinho e cada vez mais denso, dando espaço a que as sombras se amontoem entre livros, papeis, revistas. Muitas canetas, esferográficas, lápis, e um bloco de folhas em branco onde exercito uma arte de que duvido possuir, todo aflito com maneirismos e floreados e, afinal, vê lá tu, as palavras encarreiram-se tão bem perfiladas num estilo tão próprio delas, como se dissessem
- Quem manda aqui somos nós
e depois já não há aflições nem medos, apenas deixar rolar a arquitectura da escrita que parece ganhar corpo próprio; ponho o selo do meu nome por baixo, quase como que por favor, e já está. As pessoas entusiasmadas lendo aquilo que não fui eu que quis assim, as pessoas
- Escreves tão bem
e eu encolhendo os ombros, aflito também por nada mais saber dizer do que um obrigado espantado e tímido.
Talvez por não mandar nestas insinuantes palavras que me assaltam das mãos ao teclado, desrespeitando vontades e contrariando que as conduza, talvez porque as palavras formam um corpo fora de mim, e insistem abrir a minha boca onde não há voz, ou querer enxugar as lágrimas que me assomam aos olhos
- Não sejas mariquinhas
talvez por tudo isso eu não tenha dado fé, ou melhor - (lá estão elas, lá estão elas!) -, não tivesse sequer qualquer noção do quanto as mesmas baralham e transformam a leitura numa outra coisa que afasta os outros do que eu queria realmente dizer
(tantas vezes!).
Não são desculpas, querida, são elas que assim se impõem, e nem calculas o quanto cruéis são comigo
- Quem manda aqui somos nós mariquinhas
Obrigam-me a escrever entre silêncios, para que haja espaço para as leituras tortuosas, entrelinhas traiçoeiras, e depois ficam - parvas de merda! - a olhar-me com a meiguice de um cachorro desamparado. Não lhes resisto, não sei resistir-lhes, acolho-as no meu colo e deito-me com elas, amantes todas, amantes lascivas que nem nos sonhos me deixam sossegado.
O céu embrulhou-se completamente, e este escritório é uma mancha parda na janela para quem gosta de espreitar intimidades alheias. A meio surge o meu semblante mergulhado na claridade do monitor, os lábios finos, quase austeros, e o olhar raiado de cansaço. Este sou eu, o eu vulnerável que eu e t…
… que nós andamos a debater durante este tempo todo. Este que não conheces e o mais fácil de entender. O mais simples. A olhar de soslaio, borrado de vergonha, o teu ombro tão apelativo.
Queria-te aqui, para contemplar o nó dos teus dedos e compreender por que diabo as palavras
- Cala-te para aí mariquinhas
insistem que tu e eu nada, nós é que deve ser, sem nódoas, sem pedras. Só nós. Podemos tentar outra vez, estava a ser bonito e a fazer-me bem.
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