rendida

Pablo Picasso - Les Demoiselles d’Avignon, 1907


O pai nunca soube quem foi e nem imagina a vergonha e a frustração de uma mulher que quer dar um nome ao seu filho e não sabe quem o ajudou a fazer. Diz certa canção que quem faz um filho fá-lo por gosto, mas no meu caso foi um acidente, e em pleno trabalho: o problema foi tentar saber em que dia emprenhei e quem eram os anónimos clientes que nessa noite recebi

não, não o fiz por gosto, e o problemão que me arranjou o diacho do rapaz quando nasceu! Rasgou-me toda e fiquei dois meses sem poder ganhar. Lá me safava com alguns biscates, ao mesmo tempo que servia atrás do balcão de uma tasca escura repleta de bêbedos fedorentos desde que abríamos as portas e as fechávamos... às vezes tínhamos que os empurrar para as valetas onde acabavam por dormir

a vida de uma rameira como eu fui desde sempre, talvez a partir dos doze anos, eu sei lá... que miséria quando vamos pelo mais fácil, por nos convencer que temos de vender o corpo para comer. Sim, eu sei, podia ter encontrado um trabalho como criada doméstica, ou mulher-a-dias, o que fosse! Mas nada disso... é demais para o meu feitio, não sei se me entende. Nem imagina as discussões e as bulhas de quando trabalhei nessa tasca! Quem manda em mim sou eu, mais ninguém. Naquele tempo ninguém tratava a doméstica como hoje tratam! E depois... sabe como é, a gente vicia-se nesta vida. É uma hora, ou menos, abrimos as pernas ou fazemos lá o que eles querem por mais algum, e acabou-se, lavamo-nos, e toca a enfrentar mais outro... No fim é tudo contadinho. Claro que há aquelas desgraçadas que são exploradas por esses chulecos de meia-tigela vestidos de uma fatiota pirosa e levam porrada como cadelas escorraçadas... nem lhe vêem a cor do dinheiro... Nunca fui nessas cantigas. O negócio, se assim se pode chamar, foi sempre controlado por mim, eu é que escolhia onde ia buscar os clientes e que clientes enfiava na cama daquela pensão miserável, que nem um bidé tinha para me lavar. Lá me arranjava com uma bacia e um quadrado de sabão amarelo que limpa tudo. Doenças? Não, nunca tive medo delas. Agora sim há a tal sida e muitas já vi perdidas com essa coisa... No meu tempo era a sífilis que mais temíamos. Felizmente e graças a Deus que nunca apanhei essa peste. Mas, ó senhor!, chatos e comichões apanhei eu muitas vezes!... enfim, ossos do ofício, como se costuma dizer

hoje sou dona e senhora de uma casa de meninas, compreende? Elas lá se arranjam com os conselhos que a velha aqui dá. De resto, o meu trabalho, pois sim, onde é que isso já lá vai... as carnes estão flácidas. Meia dúzia de clientes tão ou mais velhos que eu, fieis, que isto da fidelidade não é só no casamento; no putedo - ai desculpe! -, nesta vida, queria eu dizer, também existe fidelidade. Tenho um cliente que me frequenta há mais de vinte anos! Coitado, dizia que se juntava comigo e que não teria de levar com mais nenhum homem, que ele me sustentaria... pobre diabo. Mal ganhava para ele e para a mulher que já lá está, na paz do Senhor, ainda por cima sustentar uma amante com os vícios que eu tinha. Sim que eu também não era apenas uma galdéria como as outras. O que ganhava era para me vestir mais ou menos bem, e jogar nos cartõezinhos das ourivesarias, de vez em quando lá me saía qualquer coisa. Está a ver este fio de ouro? Tome-lhe o peso... é bom, ouro antigo! Quem dera a muitas finórias ter essa relíquia

mas, como lhe dizia... pois, eu tenho o meu negócio. Em vez das raparigas andarem aí ao deus-dará, com esses chulos que lhes levam o dinheiro todo, estão cá com a tia Zira e vão levando a vidinha delas. Uma coisa apenas exijo: que sejam asseadas e não tragam drogados e outra ralé. Sim, put... desculpe, mulheres da vida, mas dignas, querem lá ver... e quanto a camisinhas, temo-las cá sempre, só apanha a sida quem quer. Depois há aquelas que ganham mais juízo e conseguem sair desta vida, acabam por ir trabalhar para as fábricas, para os supermercados, lá encontram um morcãozola que as queiram e até casam. Outra coisa também não admito: que emprenhem, ou engravidem, que é mais fino dizer-se. Ou vão tirar o filho, que eu cá lhes arranjo a parteira para fazer o trabalho, ou vão ter o filho longe. Mando-as a todas ao médico, lá a essa coisa do planeamento familiar... Sabe, é muito triste passar pelo que eu passei

pois, não é por dá cá aquela palha que se deixa assim um filho. Mas a minha vida naquela altura, já lá vão trinta anos... era muito difícil. Não tinha quem me apoiasse, nem encontrei ninguém que me desfizesse a criança... Acabávamos os dois por morrer à fome. Assim, eu sozinha conseguia virar-me, e ele, coitadinho, lá ficou bem entregue... Se me arrependo? Não senhor, não me arrependo de nada, e confesso-lhe que nunca tive a intenção de ir conhecê-lo. Para quê? Atrapalhar a vida do rapaz, dizer-lhe, olha filho cá estou eu, a tua mãe, uma puta. Ai desculpe, saiu-me, não leve a mal. É linguagem feia, eu sei, mas que hei-de fazer? Aprendi a falar assim, a minha mãe era filha da curta para cima e filha da curta para baixo e veja lá, acabou por ser o contrário, ela é que virou a mãe da curta... até dá para rir, senhor, não é? Pois sim

que ele se deixe ficar onde está, que eu nem sei onde é, lá para o estrangeiro... entreguei-o a uma amiga na altura que foi viver para Aveiro e anos mais tarde é que vim a saber que ela o entregara a uma família de fora. Onde, não sei. Só sei que se ele tivesse ficado comigo hoje provavelmente seria mais um gatuno ou um chulo. Eu não saberia dar educação. Mas se eu não saberia, muito menos sabem agora essas gajas casadinhas feitas santas que andam por ai a foder ao desbarato e deixam os filhos nas creches, ou pior ainda... Ai senhor, desculpe que me lá saiu outro... Sim, essas é que são umas putas de primeira. De quem falo? Oh senhor, de tanta gente, tanta gente que tem telhado de vidro e farta-se de atirar pedras para o telhado dos outros... olhe, é a vida

sabe, se eu aparecesse, agora que estou velha, na vida desse rapaz, que deve ter os seus trinta e poucos anos, estragaria tudo, seria um estorvo, um incómodo: ora uma mãe nesta vida?... Deve chamar mãe a outra, e tem pai, até talvez já terá casado e tenha filhos, não se sabe! Seria uma estranha, uma intrusa na vida dele. Não, que fiquem as coisas como estão, como Deus mandou... eu cá não mexo uma palhinha

no entanto, sabe, confesso-lhe que muitas vezes sonhei com esse filho que esteve cá dentro de mim, e saber quem era o pai, e sermos uma família... seria bom, claro. Nunca mais tive filhos, graças a Deus, nem nunca quis homem algum. Só quase estive para ir na cantiga daquele que lhe falei há pouco. Mas é só um grande e velho amigo, a quem ainda dou o meu corpo... afinal também tiro gozo disso, sabe? Pois é assim a vida

e então, já escolheu com qual das meninas quer estar?


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texto adaptado como crónica a partir de excerto do esboço de romance A Presença de Édipo, de 2003, inacabado
este relato complementa-se com outro texto da mesma fonte, publicado posteriormente, com o título resignado

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