espelho mágico

 

foto de Alexandr Sergeev


Tenho o cabelo ruivo, numa tonalidade clara, e a minha pele é branca. Algumas sardas no rosto. Muitas nas minhas costas, no meu pescoço, nos meus braços. Olhos cinzentos, ou verdes, consoante a luz. Nariz fino, pequeno. Os lábios, na sua cor rosada esbatida, recortam-se como a único traço colorido do meu rosto para além dos olhos. As minhas sobrancelhas e as pestanas são claras, quase se nem vêem. Quando sorrio, mostro a alvura dos meus dentes sãos e

o meu espelho não me diz se há alguém

perante estes traços do meu rosto podia dizer-me a mais bela, como uma branca de neve, embora não tenha os cabelos negros, nem negra é a sombra do meu púbis, é uma carapinha rala de cor muito clara, quase albina, como se

como se nunca tivesse chegado à puberdade

e o meu espelho não me diz se há alguém

alguém que a meus olhos, cinzentos ou esverdeados, consoante a luz,

o meu espelho não me diz se há alguém mais feia do que eu.

Não sei bem o que é isso da beleza, se existe um padrão para estabelecer que uma mulher é mais ou menos feia, é mais ou menos bela. Mas o que dizem, porque ouvi, é que sou uma mulher feia.

Há trinta e dois anos que sou assim, uma mulher ruiva e feia. E por isso talvez não seja mulher. Porque dizem

ou dizem outros espelhos

que as mulheres são o ser mais bonito à face da terra. Por elas os anjos caíram. Por elas os homens se perdem. Nenhum anjo caiu por mim, nenhum homem se perdeu por mim. Eu é que estou perdida para os homens, que não me querem

- Olha a ruiva

ou

- Já viste aquela ruiva tão feia?

Sou indiferente, sou o reverso dos espelhos belos, sou a chacota das pernas roliças e dos bustos realçados, e sou entre os homens, apontando, galhofeiros

- Olha a ruiva

sendo eu para muitos a amiga eterna, a meiga amiga que lhes dá o ombro, nos momentos de amargura. A amiga ruiva. Ruiva e feia. Alguns dizem-me, quando pergunto,

- Sou assim muito feia?

que a minha beleza é interior - um cliché tão gasto, tão batido –

sou uma tecla batida

de modo que desviam a conversa no momento seguinte,

(porque não terão o dom dos espelhos mágicos?)

continuando a desfiar os horrores e amarguras das suas vidas sentimentais, dos desgostos que as pernas roliças e os bustos realçados lhes infligem; e sinto que, apesar de atentarem nos meus conselhos

- Talvez devesses falar melhor com ela

(que são frases que se dizem, tão batidas quanto a beleza ser interior, clichés e teclas batidas)

sinto que o que mais os aflige é a dúvida de saber se a amiga ruiva feia continua disponível para despejarem como num vómito de sentimentos tudo o que lhes rói na alma, e a mim

branca, pura, virginal

estala-me o desejo no sangue, e eles nem imaginam o fogo que se apossa do meu corpo quando se entregam chorosos de braços abertos como se vissem em mim a virgem Maria

(e Maria não é o meu nome, é

- Olha a ruiva

ou

- Já viste aquela ruiva feia?

por isso, a ruiva, a Ruiva Feia, sim, creio que é esse o meu nome, Ruiva Feia)

eu querendo deixar de ser a virgem

(Maria, ou a virgem Feia Ruiva, a Ruiva feia e virgem)

com uma vontade enorme de dizer-lhes para se borrifarem nas das pernas roliças e bustos realçados, e fazerem amor comigo, fazerem todo o amor que jamais fizeram com alguma mulher que se fite diariamente ao espelho e não saiba o que é ser branca, leitosa, sardenta, de cabelo em chamas, talvez das mesmas chamas que me cobrem de calor o corpo nas noites em que adormeço nas minhas fantasias e gozo na solidão e na sombra de um espelho que não sabe dizer-me

(porque não terá o dom dos espelhos mágicos?)

- Não há mulher mais feia do que tu.


Comentários

Anónimo disse…
os espelhos mentem sempre aos nossos olhos. mas estes espelhos do teu texto parecem sinceros. eu gostei muito, alexandre. um beijo.

delírios mais velados