o evangelho segundo este poema

fotograma de The Last Temptation Of Christ, de Martin Scorcese

Nascemos.
Jamais seremos indiferença.
Ergue-se um mundo do mundo já erguido
nele as glórias, as vãs glórias
neles as alegrias, as solenes alegrias
neles os amores, emancipados amores
nele o nosso gemido
nele todas as histórias
todas as histerias
todas as dores.
E de um mundo então erguido,
morremos.

As minhas sandálias descobrem nas areias os teus passos da sombra que me persegue. Porquê esta angústia, esta piedade que me lacrimeja os olhos - quando estou entre a multidão por que desespero? Por que me dói onde não tenho qualquer ferida? Por cada talhar do machado na madeira ainda jovem, por cada prego nas entranhas desta carne por saciar, broto uma lágrima que cai lenta e apaixonada no pó que se levanta e rende, húmido e salgado ao medo de ser quem sou, à angústia que me assalta pela noite. De onde vens, por que me persegues se te não vejo? As madrugadas, estendido na minha enxerga, são martírios por te amar e não te conhecer.

Como bebem e comem, gemendo sorrisos no prazer da gula que lhes sucede à fome miserável da alma. Vêm até mim e eu lhes digo que a minha fome e a minha sede não se sacia, nem os meus lábios sabem rasgar o mesmo sorriso. Levam-me a casa de uma mulher e dão-me haxixe, dão-me vinho para que beba do espírito e o espírito queima por dentro todas as fomes do homem que sou. Como bebem e largam risos perante meu olhar petrificado: ali, no ventre daquela mulher, nascem víboras que clamam o meu nome.

Nascemos: jamais seremos indiferença. Eis onde vive o mistério de todas as dores, de todas as crenças: o nascer para a vida, erguendo-se um mundo do mundo já erguido. A palavra que renasce em cada um dos homens que habitam o mundo para quem o amor e o apego à vida é o caminho de que se desviam qual camelo rendido à estreiteza da agulha. Todas as glórias de todas as conquistas, todas as lágrimas de todas as derrotas, todo o amor, amor maior com que me revisitam, toda a dor, dor que me alimenta, e dor de que te sacias: eu sou o filho do homem, duas vezes carne do mundo. Cumpra-se a palavra para que o tomemos reerguido.

Jejuo do que é particularmente terreno. Saio pela noite fria, envolto em meu manto e não carrego a enxerga - esta noite não é para dormir. Encontro na raiz das minhas veias o segredo das insónias quando o tormento exasperado sai de mim como a carga que cai do dorso carregado do camelo. Esvai-se tudo de mim como se o sol repousasse todas as horas por trás das crinas das dunas e sou livre e imenso no ventre de tudo de que se faz o vento.

Vinde até mim, almas perdidas e fustigadas pelo gume da indiferença, vinde ao calor do filho do homem, aquele que jejuou dos prazeres terrenos para encontrar a palavra redentora que vos vem salvar. Vinde até mim, órfãos da riqueza, espoliados da soberba, arrependei-vos da vossa nefasta solidão. Vinde, vós que bebeis perenes das fontes do prazer e não sabeis explicar o azedume das vossas lágrimas; chegai aqui, indomáveis, rebeldes, delfins, insaciados, abram as mãos para receber da palavra e dela comer. Vinde até meus braços, vós que sofreis de dores e tormentos, feridos e esfomeados de toda a natureza, esquecidos e maltratados. Vinde, ó proscritos, e recebei a redenção. Em verdade, de todas a verdades vos digo que estas palavras que vos canto são os versos com que o pai pediu para exultar o mundo.

Estou na paz como estou na brisa que suaviza o rosto do campino ceifando a sua seara. Estou também no trigo de todas as fomes, na carne e no sangue, no dilúvio e na tempestade, e estou também na água de todas as sedes, na aurora e na bonança. Estou na lágrima que rola do espinho cravado na alma do mundo, estou no meu pai que te perfilha, na minha mãe que te acarinha. Estou no mundo erguido pelas minhas mãos.

Que desça sobre a terra toda a incúria salgada da vossa fraqueza e se derrame o meu sangue como um cordeiro que morto foi para saciar a fome aflita. Que se abram os céus após o vão dilúvio, que se encha a colina de sol e de brilho os mares. Sou aquele que ama e se entrega, pois erguido foi este mundo.

Escrita na história e nos passos por sobre a areia que palmilhei está a cumprir-se a profecia:

- e de um mundo então erguido, morremos!

Comentários

Anónimo disse…
saciar a fome de génio ao ler-te! um grande beijinho, alexandre. boa páscoa!
Luís Galego disse…
Estou na lágrima que rola do espinho cravado na alma do mundo, estou no meu pai que te perfilha, na minha mãe que te acarinha. Estou no mundo erguido pelas minhas mãos.

Belissimo e arrepiante o que por aqui li...
Teresa disse…
Superior! Obrigada!!
TSC

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