águas de março


A folha e a chuva, por Helcio A. Rocha em 1000 imagens


Tens de te conformar com a chuva que escorre dos céus. Um lugar-comum diria que as lágrimas. E continuaria com a morte de alguém, que felizmente tu ou eu não conhecemos. Ou, por outro lado, diria quão abençoado é aquele casamento, se porventura é sábado. E assim se fazem os dias cumprindo os lugares-comuns ditos e não ditos. Porém, sabes que não é isso. Não são os clichés que fazem os dias. Não são os clichés que explicam a chuva e o frio no dia em que tu preferias que raiasse o sol e pudesses vestir roupa mais leve, algo que envolvesse o teu corpo como numa pluma. Fosse este o dia em que pudesses cheirar as primeiras margaridas. E que te plantasses à beira-mar à espera dos raios oblíquos de um crepúsculo morno. É como se o dia lhe custasse a acordar, sacudir o sono da madrugada. Como se o dia fosse como tu: escondida na manta com que te aqueces, olhando pela janela a noite obstinada no tom plúmbeo do céu.

E ainda assim, a chuva é água clara. É luz, talvez, se observarmos bem. E retornando aos clichés, é esta a água que vem salvar da sede as tuas primeiras margaridas do ano. Sim, está escuro, é triste. Apontas-me o livro como se fosse a única coisa que te restasse. Isso de ler enquanto chove, minha querida, também é um lugar-comum. Ninguém pode ler enquanto chove. A verdade é que ninguém se conforma. Está muita gente à procura do mesmo que tu. E outros esperando o mesmo que eu: que essa manta se levante para cobrir uma tarde de amor feita de adocicados humores.

E pronto, termino assim para te não incomodar mais, num afecto carregado de clichés, enquanto os céus vertem as águas de março.

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