geografia

foto Brett-Roeller


A chuva incide hesitante no horizonte, espumando-o de névoa. A vidraça lacrimeja no exterior. Do lado de dentro duas brasas na lareira contestam o frio já moribundo, e uma garrafa de vinho para argumentar a temperatura dos humores.

- Vem para aqui,

insinuas-me, enquanto o meu olhar ainda se demora oblíquo no desfocado de algodão doce da tarde.

- Não ouves?, vem para aqui, para junto de mim.

Sorrio, esquecendo a boca arqueada de tantos meses. Fora um tempo em que não recordo os dias, de tão despojado me sentia da vida, deslizando para o fundo à medida que o sol se afastava e as horas seguravam a penumbra. E desde aí eu apenas um corpo lasso dentro de um quarto sem luz, sem que as janelas encontrassem qualquer razão para abrir.

Foi quando senti que as tuas mãos ardiam do fogo de que se move o mundo. Que o impossível era apenas uma hipótese descartável, isenta de fundamentos verdadeiros. Vieste devagar a deitar-te a meu lado, aquecendo-me as noites geladas, velando o meu semblante pétreo.

Um dia calhou que eu sorrisse, e do casulo enfiado brotaram borboletas como se a primavera ascendesse antes do tempo sob a almofada onde repousavas os cabelos. Não tinhas roupa nem vergonha, e a tua pele ofegava. Deste-me a provar-te, e ensinaste-me que mesmo no fundo era sempre possível amar.

Trouxeste-me assim para o dia de hoje. E ainda que o dia se acinzente de chuva indecisa, não regrido agora mais. Tornaram-se as janelas montras para que eu possa continuar o que desejara morto.

Deixo enfim a paisagem para lá da vidraça e vou para junto de ti. Apelas-me com o olhar, o gesto do ventre, a carícia do perfume. Enlaçamo-nos e reencontro-me em ti.

Porque, meu amor, tu és a justa geografia do meu corpo.

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