não digas


fotografia de André Boto (daqui)


Não digas que vais embora assim, a despedires-te à porta, abrindo uma ferida sobre a luz da tarde. Não saberei render-te, o crepúsculo virá indiferente e a porta uma dor negra habitada por fantasmas mesquinhos, comigo numa espera imbecil de chinelo nos pés e pijama vestido, afundado no sofá, enquanto a lua subindo, pouco interessada sobre se foste se ficaste, e se eu.

Vai haver vestígios de qualquer coisa com algo de ti na televisão, e eu acobardado fugindo à tempestade emocional gerando remoinhos sob o meu peito, eu todo teso a dizer aguenta-te!, olhando para as pessoas desfilando no ecrã. Vai haver vestígios de qualquer coisa com algo de ti também na rádio, quando cansado estiver do sofá e for abrir a cama fria da tua ausência, ronronando música e vozes que não saberei escutar, eu num esforço todo tremeliques, a convencer-me: isto não é nada, vais ver que ela ainda volta, está aí não tarda, já se ouvem os passos dela, sossega.

E nada mesmo, não são os teus passos que se escutam pela porta escancarada de medo, ferida que dói, dói, dói e dói e a qual não saberei tratar, por mais ansiolíticos que tome para afugentar o pânico. Vou acordar numa manhã estéril de sentido. Ligar-me-ão os colegas lá do escritório preocupados, então não vieste trabalhar estás doente, e eu apenas: é a porta que permanece aberta, e eles coitados sem entender patavina, desligando o telefone e comentado em sussurros passou-se este, agora que temos aí os japoneses a chegar para fecharmos o negócio.

Não digas que vais embora, fecha a porta e abraça-me. Não foi nada, vais ver. Tudo continua como antes, podemos assistir aos concursos da televisão divertidos com os disparates das pessoas todas nervosas a responder, e depois, quando o sofá se cansar de nós, abrimos a cama e aquecemo-la com os nossos braços as nossas pernas, as bocas e os hálitos, e adormecemos com a música ronronando baladas noite fora na rádio. Amanhã fecho os negócios com os japoneses, vais ver, tudo na mesma, e nem vou sequer precisar dos ansiolíticos, não há pânico nem nada dói se fechares essa porta depressa, depressa, depressa, agora, por favor.

Não quero acordar amanhã com a vida a doer-me em cima, saber-me sozinho e que dali em diante correrei mundo a mendigar rostos, ombros e colos para cá virem a casa, com ciência de peritos a verificar o que diabo terá a porta para me magoar assim tanto.

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