lugares-comuns



foto de Memo Hernandez

Sabes, há dias em que é obrigatório parar e reflectir. Sei que é um cliché gasto e tu olhas-me de lado num tom de “que vem a ser isto agora?”. A vida é um perfeito cliché, meu amor, feita de todos os lugares-comuns que conheces. Atravessa-nos o corpo e a alma sem dó nem piedade. Falta-nos sempre o alguma coisa que vem afinal a ser tudo. E não alcanças, talvez nem almejes o pouco que falta, o tudo que é nada. Agora o que te peço é que me ouças, bebericando a tarde no teu copo multicolor.

Vim agora mesmo de ver o mar, e perdi-me, afogado, no turbilhão das memórias. Se as contasse teria que fazer uma canoa, ou uma jangada com as palavras. As tuas perguntas, sempre curiosas, seriam o remo e o leme. A minha mão como uma tabela das marés. E a tua boca, sem cuidado, rochedo firme e encalhado, ou talvez – se é com um bocejo que me ouves – a ponta do iceberg traiçoeiro.

De maneira que, e à semelhança do lugar-comum do desencontro, deixo-te um molho de chaves, dois passes de metro - não te vás perder por aí – e despeço-me. Como nesta canção do Chico. Tudo o resto sobra, é pano a mais. Como te disse, perdi-me. Sem fio de Ariadne. Já sei que não gostas de teias nem de aranhas. Mas foram as tuas mordeduras que me ficaram.

O resto é teu. Sem lugares-comuns.

***


«Eu vou lhe dar a medida do Bonfim, não me valeu. Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim? O resto é seu. Trocando em miúdos, pode guardar as sobras de tudo que chamam lar. As sombras de tudo que fomos nós. As marcas de amor nos nossos lençóis, as nossas melhores lembranças. Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer. Aquela aliança, você pode empenhar, ou derreter. Mas devo dizer que não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar, nem vou lhe cobrar pelo seu estrago... Meu peito tão dilacerado! Aliás, aceite uma ajuda do seu futuro amor p'ro aluguel. Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu. Eu bato o portão sem fazer alarde, eu levo a carteira de identidade, uma saideira, muita saudade. E a leve impressão de que já vou tarde...»

Chico Buarque

Comentários

delírios mais velados