lírios


fotografia de Joana Lorça (daqui)


Não

(por favor)

não acendas ainda a luz nem corras os estores, deixa marinar um pouco mais esta ressaca na sombra dos meus pesadelos mais recentes, tragados a fel de nostalgia e desespero. O dia fervilha de luz na ombreira da porta e a manhã, sabes

(a manhã que sempre me espantou com a sua boca delicada de lírios)

não iria continuar se me mostrasse plantado entre olheiras neste rosto de granito. Chovesse talvez

(essas pérolas que ainda me adoçam a alma)

e estenderia a mão afugentando o fumo dos cigarros para ver as vidraças tristes, mas bem vês que não há chuva ou correm nuvens de oeste, nem sequer nevoeiros que me ajudem a suportar devagarinho os nós e as correntes que me afligem, a levantar-me desta preguiça visceral de medo, de tudo o que já não ouso respirar. Há o sol

(perguntando duvidoso nos estores da janela)

que aguenta a manhã no brilho das flores e eu sem coragem para te oferecer um beijo, dizer que te amo como se bom dia, qualquer coisa que

(vais dizer-me que não há motivos)

pudesse fazer ou dizer para que não temas, não receies. E não te afastes. Não vejo o teu rosto, bem sei, mas sinto-te o olhar gritando e nos lábios o mesmo fervilhar do sol lá fora nesta manhã de verão. Tudo arde e grita e ama e a minha pele acinzenta-se com golpes de solidão

(a manhã perpetuando as horas na esperança que)

e dizem-me mais uns dias, num risco de voz trémula

(com pena?)

como se isso não fosse o bastante para contar uma eternidade, desde que te sinta as mãos a medir-me a testa e o resto sombra, para que não perceba o teu lacrimejar, gotas de mar mediterrâneo que me prende ainda mais à vida, e tenho medo, tu sabes que tenho medo e sorris

(a manhã perpetuando as horas na esperança que venha saudá-la para me deixar mais uma pequena brisa de vida, restaurar a cor da minha pele)

e tudo seria para mim tão patético e lamechas como um daqueles filmes que assistias aos domingos nos intervalos das nossas tardes de amor durante o inverno, mas agora tornou-se tão sério desde que ressacas dias e noites a contar a origem do fim.

Diz à manhã

(por favor)

que se deixe crescer, promete-lhe que os lírios levo-os comigo. E quando o corpo arrefecido, permite que o sol desfaça a sua curiosidade.

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