pela humidade dos lábios
Fumo sobre um copo de whisky que tem a humidade dos meus lábios. Tinha a quase certeza que aceitarias o meu convite, mas a cidade era um aglomerado deserto de gente sem a tua presença. Não sei se pelo sol tímido, se pelas nuvens plúmbeas que ameaçavam o encanto breve da praça, se pelo frio que obrigava os passos das pessoas naquele ritmo ligeiro sem olhar o rosto dos outros – era uma cidade sem carne, sem sangue. As tuas mãos não estavam lá, para me proteger, para me encaminhar.
E desencaminhado retrocedi toda a marcha da tarde, acabando neste cubículo onde enfim me incenso. O whisky convidou-me numa solenidade aristocrática para que, de resto, não apagasse a luz da tarde só. O tampo da mesa teria poesia para te recitar, talvez dois ou três versos me saíssem das mãos a agradecer-te a presença. E o meu rosto teria uma ternura de criança, emocionada com o tom da tua voz, como se essa criança quisesse o embalo do teu colo.
Não estiveste, não vieste. Voaram os pássaros, recolhidos numa pluma de sono quando a tarde caiu. Fiquei com a memória vaga de ti, e numa atitude digna
(porque o whisky quis que me rendesse à sua condição aristocrática)
acendi o cigarro sem convulsões, sem qualquer lágrima, apenas a postura lamechas de ir fumando sobre o copo que tem a humidade dos meus lábios. Sem os teus, sem os teus... Uma humidade salgada, pois que talvez os lábios também chorem. Quando te encontrar, nada te direi – estarei enrolado numa pluma de pássaro para que sejas tu a tomar a iniciativa de entrar no meu sono. Se vieres então
(sem whiskies, sem cigarros, sem poesia – e sem qualquer inclinação lamechas)
tomarei o teu corpo debaixo do meu para respirar brisas de uma primavera ainda longe dos calendários.
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