o grito da borboleta

foto de Laurent Hagimont


Dezasseis horas e quarenta e cinco minutos leva o dia, sinal que a tarde finda, nesta latitude, numa inclinação cada vez menos afecta de luz, resignada à penumbra que o outono impõe. Fui lá fora, verificar no rosto a mansinha precipitação das nuvens que insinua um entardecer húmido, longe do outrora lilás do sol se escondendo, na vertical, em despedida. Lânguido, talvez até pesaroso, reentro na sala estigmatizada de palavras pretensiosas de assinalar as emoções.

Escrevo:

Dificilmente um outro homem virá a amar-te na mesma confissão libertadora como te amo, isento de exclusividade. Isto é, que não sou rei por possessão do que és, sequer do corpo que me corresponde nos momentos de maior amargura. Nem rei, nem deus: qualquer coisa que signifique autoridade e salvação eu não estou, não sou – para nada disso fui talhado.

Escrevo:

Dificilmente uma outra mulher ter-me-á amado ou virá a amar-me nesta tua oblatividade confessa. A maior parte delas, as mulheres a quem (e por todas) altar construí, somam-se estranhas, naquela ilusão resignada da moralidade patriarcal e machista, do sempre eterno, da felicidade conjugada por sacramentos, vida toda concebida para domésticas casualidades e mundanas rotinas, os filhos, a carne, o temperamento, rodilhas de roupa, fogão, panelas, sopa

- Olha o menino!

e a velhice entregue a romantismos desmedidos numa redoma démodé, clássica, mas nem por isso bela.

Dezassete horas e vinte e dois minutos, e é tão feio o quadro em que a janela aqui defronte se transformou. Plúmbeo céu, com a verde erva aparada com veleidade de cabeleireiro. Os gatos brincam naquela humidade, tomando raízes como caudas de vertebrados que se mexem freneticamente.

Escrevo:

Este vírus. A pandemia. Retalho a forma como visiono as pessoas na rua, numa paródia: hoje temos roupa interior para o rosto. Cuecas faciais, alarve de riso concebo assim a moda obrigatória, negando o conceito de máscara. Cueca, higiene, bem-estar, segurança íntima. O rosto que começa a não ser montra do que somos, do que sentimos. Mostrar o sorriso acabará numa obscenidade como exibir um pénis, uma vulva?

Escrevo:

Resolve-me o amor que te tenho, circunstancialmente, o que me basta para aturar saturados telejornais. Não saber o que quero é coisa de um passado que somente atormentará numa nostalgia impressa no assobio dos melros em recolhimento. Questiono-me sobre o futuro… indiferente, porém, do que virá (do que poderá vir?), e aligeiro o pensamento de cigarro pendido nos lábios, a congeminar cenários, por puro divertimento, enquanto mexes a massa da abóbora, ou da castanha, com outro olho posto na geleia, na marmelada

(outros atentos à fermentação para cerveja mais quente, pois que o frio, agora…)

Paro! Pari verborreia. Morrison no céu e eu à espera, desde os dezoito anos. Não para a salvação, apenas contrariado pelo cansaço de persistir nisto que não é, continuar o que não sou. Décadas nisto, imaginas? Não fosse o teu amor, o alpendre aguentaria, firme e com orgulho, o peso do meu corpo. Lá dentro, de erecção recessa, o último orgasmo.

Felizmente, estarás tu, um dia, para o receberes, sem cordas ao pescoço. E toda a música acaba, com o sinal das dezassete horas e quarenta e cinco minutos. Hoje é sábado. Ainda te lembras? Tu aparição por no teu rosto a epifania e eu deslumbrado com a genial mouquice crescente de Beethoven, crente na sua sétima sinfonia.

Ama-me duas vezes, não vá o acaso dilacerar-me em viagem sem retorno. 

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