locução bipolar

foto de Georgy Chernyadev


Isto sinto e isto escrevo
Alberto Caeiro


Alvorada: a madrugada amoleceu de sonolência o meu corpo, vaga nuvem de quebranto, e o orvalho foi gotejando, minúsculo, nas ervas e nas folhas de que se vão fazendo agora os caminhos, pelo despir ainda voluptuoso das árvores. E percorri todo esse espaço nocturno com palavras por inventar. O sono ensurdeceu a torrente. Encontrei-te nos sonhos. Sei que eras tu, colorindo os pedaços de sombra com o que nunca fora dito. Então, quedei calado na matutina vigília, vagueando o sono por entre o tecer fino dos teus dedos, procurando respirar a leveza do teu sorriso. E nisto, já não me afligiram medos, e nem sequer minha pele, tão sedenta do teu toque, deu sorte ao frio por entre os seus poros.

A abóboda da manhã tornou a frescura em azul, maduros os campos do milho e do trigo, a espera acentuada da uva, perfumado néctar em suas ramadas. E tudo isto são carinhos do sol como que beijos. Bebericando café, a despertar com os melros, procuro o já velho álbum das fotografias. Trinta e poucos anos. Poucos. Trinta. É tão tenso o tempo, dilato e oprimido. Ao abrir, o teu rosto: o teu olhar então revelando-me suaves tentações. Disseste uma certa vez, quando te questionei da razão de olhares assim nas fotografias:

- O meu desejo é como o tímido esquilo que se esconde do ruído. Às emoções, porém, nunca o meu olhar delas foge. Quando és tu, é muita tentação. Filtro-me na luz para a tua íris, perpetuando-me.

Eu, de espanto mudo, gaguejava quando assim falavas, enquanto tu continuavas

- Deixas as palavras à mercê dos ventos e dos sons. Palavras que na tua boca arrumas, incrédulo. Palavras que escondes em teu olhar de espanto. Mas as palavras

completando eu, a lembrar um poema de António Ramos Rosa

- … que dizes dançam dentro do sonho.

Meio-dia: quando os sentidos divergem entre o ar pálido escorrido pela manhã e a agonizante transpiração do entardecer. Vem do já morno esclarecimento dos corpos, feito de uma comoção misteriosa do que é rotina e por isso falível. Continuar sabendo ser pluma e jardim, brisa e flor, nesse pretérito poético. Planar no céu, suave, todo o toque macio e líquido, não recusando a emoção lírica. Todo o ar sem tempo e o tempo sem medida, sabendo ser saliva e sede na frescura e na sombra. Suave é a penugem do fruto, feito ave. Só as aves antecipam, no pino do sol, a ousadia da tarde como se linhas de um poema.

Faço dessa ousadia o propósito de pegar em tua mão. Imaginar em ti as sílabas do corpo nu e macio num quarto sob janela que agita as suas cortinas, enternecendo a esfera orbital do meu coração. E, se ou quando dilacerado, ouso levar-te rompendo a bravura dos ventos, fazendo-me prometer olhar-te nos olhos para que te revele o amor que pudesse desaventuradamente ignorado. Ousarei, digo com esta solar cegueira, sempre em ti os meus nos teus lábios sóbrios, se por fim viajar-te é conquistar sem recear perigo. Tragédia e epopeia. Todo o lirismo. Os poemas todos como que apenas eu e tu. 

(quererás tu, ó Sol que tanto me aqueces nesta hora de fome, contrariar este enlevo?)

Tarde: em nada dizer-te, basta-me escondido no teu abraço apertado, por ser em abstração o refúgio de estar em ti, forçar para que abras o que há em mim fechado. Ouviste-me os segredos peculiares enquanto assobiava de espanto de mim próprio a fingir loucura, cantando por estas maduras searas dentro, inconsciente de qualquer rumo, de tão embriagado me tornar. Ouviste-me os segredos, corpo e espírito, tudo de assombro, percorrendo toda essa distância alongada entre o que quis e o que acabei por ser. Ouve-me agora os passos que percorro por eco de tantos pesadelos pretéritos e da escuridão persecutória.

A tarde desceu, fez-se multicolor. Nenhuma novidade, diz-te o meu semblante nessa estranheza do olhar colocado em latitudes inventadas, como a curiosa demência dos velhos. Escuta, ouve-me agora – no ocidente o azul acidentado pela curva fugitiva do sol, a leste o riso listo da noite. Já só poderás escutar o meu silêncio, esse rubescido, incólume mas irritado, arisco e impertinente silêncio. Oh! nobre silêncio meu… Oh! crepúsculo, deus meu, essência do que fui criado para ser!

Noite: a vez da lágrima. No meu rosto está o lugar da lágrima, disfarçada pelo frio orvalho. Tempo de sossego, para o que quero sentimental e objecto de criação. Entendes: o súbito crescer do espírito, essa elevação que vem quando, após planar, pretendo pousar os pés. Ignoro sempre a terra, e a sua humidade. Subo à torre, caio no pedestal que inventei para mim. Já não é este o rosto que beijaste e, quando tarde, ainda o sentias cedo para o consentimento do desejo que tanto arde.

Vem assim, em veludo e algodão, a hora em que envelheço, acudindo os incautos num shhhhiu de pedir silêncio. Não são os dias, antes as noites, todas numa patética surdez de aniversários, soma hoje de cinquenta

(amanhã logo se vê). 

E envelheço nos meus lábios os momentos que tivemos, com as mãos recolhendo as lágrimas de onde já não tenho o rosto. Envelheço com um sorriso disfarçando o já eterno cansaço, dilatado nas mágoas, com o olhar no desgosto.

Pedes-me um poema, e eu refuto: fechemos o livro, encerremos os capítulos, não deixar ponta solta, qualquer surpresa que possa advir de orações mal-acabadas. Sabes, há vozes reunindo-se em torno de mim, e eu sou agora uma clareira. E todas essas vozes vieram para me dizerem, e me convencerem, que nunca há fim onde não houve princípio, que vim cá pela peculiar razão de um nado-morto.

Seria bom e natural deixar esta ideia, sim. Mas, nesse caso, seria dizer de mim outra coisa qualquer que não sou. Nem nunca vou ser, meu amor.

Amor que não há, enfim, cá dentro. Nem qualquer poema, senão:

vão crescer os meses e esta minha mão
sobre eles a dar-lhes empolada profecia:
nenhuma luz para tão medonha escuridão
que me fragmenta, e a ti daqui só distancia.


 

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