o estertor de zélia



Pobre Zélia que correste sem nunca te encontrares: ao fundo da tua alma decidiste que era onde encontrarias a saída, pudessem os seus labirintos ser vencidos ou não. Chegada a meta e transpirando de tanto correr, foi a vez do teu último suspiro. Nunca imaginaste ver-te o quão longe te tornaste de ti própria. Fugiste para a embriaguez, percebendo que, ao reparares na dobra do lençol manchado do teu sangue, há muito tempo te fugiu também a vida.

Já não poderás parar. Agora, na observação torpe do sol e do azul claro do céu que te testemunham pelos vidros baços da janela, concebes a incerta reserva que será somente um outro mundo que te espera. Neste deixaste semente, único motivo para um sorriso muito breve. Ouves as vozes dos teus filhos, assomadas num sonho lindo e distante 

(como se, por conceito de sonho, sonhar não te fosse permitido, mas antes, por terror, o pesadelo inerente se continuasses ainda inteira). 

Hoje, após rotina do quanto foste espancada, cuspida, enxovalhada, humilhada 

(que adjectivos podem fazer-te justiça?), 

podes, enfim, mergulhar na escuridão que escolheste para lavrar a paz, e dobrar palavras de sono na esteira da tua agonia. Dizes que amas os teus filhos e, sem que eles possam perceber, abandona-los com o olhar petrificado no nada. Foi o que ainda pudeste desejar.


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