MULHER



Disseram de ti a costela primeva do mundo mas eu não partilho tal premissa. Se anjos caídos houve, nos tempos em que dos céus caíam as mais belas criaturas, então anjo foste caído da mais celestial sabedoria.

Quis o inferno, por castigo viril, que fosses cristo intemporal para carregares no corpo e na voz muda os pecados do mundo, e foram somando as páginas da história humana todo o sacrifício e velamento da tua vocação para enaltecimento dos varões umbigos de todos os maiores e menores poderes que todos testemunhamos.

E do grito que rasgaste demolidor para a absolvição da culpa e da maldição do sangue, soubeste tomar nas mãos o fruto e a flor como armas de arremesso e quiseste volver o mundo como se do avesso fossem rosas, ouro e a água clara das nascentes: o perfume delicado, a inteligência criadora e a liberdade redentora de um útero cósmico, universal.

Ainda assim, de provas dadas do altruísmo e inspiração divina, quer-te o mundo obstinado que cristo ressuscites e tomes ao ombro a triste cruzada da tua condição de género fraco. Dá-te este mundo as luvas para um combate de igual para igual, porém com o riso escarninho de quem sabe de antemão que nunca tal sucederá.

Ergue-te e toma o pedestal por direito, ser dos milagres, tu que dás varões que o mundo anseia tanto idolatrar. Não és a força bruta com que o macho te domina subvertendo-te. És de todas as eras e chegado é o tempo de haver luz nas páginas da história que se vão escrevendo. Do que a humanidade precisa, para se completar e afirmar, é dessa matéria do amor e da singeleza das coisas simples e belas que carregas em teu seio.

Não só do sexto sentido de onde te vem deus ou deusa, mas de todos os sentidos. Nossa verdadeira mãe – esta sim intemporal.


(08.03.2009)


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Manhã 

Manhã, que em ti encerra
Este mar que não se altera,
Este vento na galera
Que teima em ti pousar.
Madrugada, de repente
Sou pássaro sou gente,
Tão distante e nunca ausente
E teimo em ti pousar.

Mulher, minha alvorada
Tu és o vento que tarda,
Por ti pouso o cansaço
Na verdade de um poema
Na mentira de um abraço,
Teu leito é o meu regaço
Eu quero assim ficar.

Barco que torna ao porto
No teu corpo eu me aporto,
Aí fico e me recordo
E teimo em ti pousar.
Neblina, despertada
Tão leve quanto a espada,
Que se bate por tudo e nada
E teima em ti pousar.

Mulher, minha alvorada
Tu és o vento que tarda,
Por ti pouso o cansaço
Na verdade de um poema
Na mentira de um abraço,
Meu leito é o meu regaço
Eu quero assim ficar.
Na verdade de um poema
Na mentira de um abraço,
Meu leito é o teu regaço
Eu quero assim ficar.

Pedro Abrunhosa
Tempo (1996)

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