post insomnia
fotograma do filme Few Of Us, por Šarūnas Bartas, 1996 - via Absolution |
Soa distante a composição do primeiro comboio do dia sobre a ponte num chilreio de carris. Alguém madrugador na rua espanta o som dos seus próprios passos com um quase lamento
- Parece que vai chover
e o cigarro esvai-se nesta vagarosa hora da manhã em que era suposto a tua mão na minha sem provocar aflições no meu peito. Hoje, porém, sinto com desdém que a pousas a procurar o afecto, enquanto se desvia a minha perna esquerda na sombra dos lençóis, a aligeirar a fome do abismo ainda escuro do chão
- Olha que cais!
Na vez daquele sorriso, ou do matinal bom dia repetido ao longo de anos, os meus lábios desenham um frio azedume. A perna resvala por fim, em pequeno estrondo sobre o soalho porque o silêncio a esta hora é de tal forma imperioso que podia perceber-se o roçagar de uma pluma varrendo o pó. A tua mão ainda tenteou o volume das minhas nádegas naquele desequilíbrio, não sei se por vã esperança libidinosa, se simples resgate do meu corpo à cama, mas acabo por levantar-me e deixar-te encolhido entre a suplica dos lençóis.
Não te adiei o amor, sabes que o recuso, poderás apenas não ter percebido há quanto tempo isso vem acontecendo, mas certamente percebes já que sempre hás-de morrer de mim e, hoje, nesta imprecisa hora da manhã, é a minha particular oportunidade de te encenar
(sem acenos, porém, como é meu apanágio)
o adeus. Nesse instante, em que deixo sair os sentidos de mim, pude decifrar ainda a tua voz num lamento repetido
- Parece que vai chover
e tens razão: há-de chover para me livrares das tuas ocasionais vontades.
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