transtorno


I’m getting out of here.
Where are you going?
To the other side of morning.
Please don’t chase the clouds, pagodas.

James Douglas Morrison, The Movie


Definir a paisagem além da janela aqui defronte: fotograficamente, são ângulos acentuados por sombras de um quadro de Hopper quase sem cor, ou de cores soturnas – mesmo o branco é um cinza muito pouco definido e sem luz. Movimento praticamente nenhum, excepto ramos de um arbusto que baloiçam sob um vento delicado (não é brisa nem é ventania). Não há céu que se faça destacar do resto da composição. Vários sons, no entanto. Motores de automóvel e motoreta, os vidros da janela emitem alguma vibração quando qualquer veículo mais próximo. Uma ou outra voz, de adulto e criança, sem se ver de quem, adivinha-se que femininas, por agudas e delicadas. Um avião que passa, evocando os estrondos das nuvens em horas de trovoada. E quando tudo isto se suspende, por breves momentos, aquele borburinho de distância indefinida, da rotação do mundo e das coisas que nele estão. Atmosfericamente é um dia cinzento, húmido e frio, embora não caia chuva para já.

Um espectador do outro lado da janela, virado para o interior, não pode afirmar que há grande distinção entre os ambientes de fora e de dentro. Estore levantado e, depois da vidraça, o véu pálido como que sujo de uma cortina feita de renda. Na imediação da luz que transpõe a janela, o contorno de algum mobiliário. Mais no fundo, em contraste com uma parede clara, a silhueta de alguém sentado e debruçado sobre uma mesa, ocupado com um papel branco (ou de um cinza muito pouco definido), escrevendo ou desenhando. Pelo movimento parece que a escrever. Do lado de lá não se conseguirá ouvir o som do lado de cá, mas um sonoplasta poderá conceber: o tique taque de um relógio de parede, o zunir electrónico de qualquer aparelho ligado à corrente, a fricção de um lápis rombo sobre o papel. A respiração normal de quem escreve. Algum suspiro, ou bocejo. Música, talvez, ou um televisor onde diálogos de um filme. Poderá ainda estar mais alguém engolido pela sombra, que fale com quem escreve, ou que emita apenas ruídos domésticos – adulto ou criança.

Aquele que escreve faz um gesto largo para negar o sonoplasta. Não há música, televisor, nem está mais ninguém. Após essa pausa, retoma a escrita e é perceptível o movimento da mão que vai sendo empurrada pelo braço a firmar o lápis contra o papel. Aquele ou aqueles que o lêem (lerão?) decidem: o escritor vai zangado, pela força que faz a escrever. O sonoplasta amplia o som do lápis, cada vez mais rombo, riscando o papel que, pelo ruído, sofre de enorme pressão. E agora, com a energia de conseguir alterar a disposição quieta de outros objectos menos perto de si, o quase estrondo (será altura de o sonoplasta baixar o volume) da ponta de grafite do lápis a quebrar-se, um repentino restolhar sobre o tampo da mesa, o seco tilintar do lápis atirado com força, as mãos de quem escrevia muito nervosas, agitadas, tomando o papel. Percebe-se que é rasgado e amarrotado. Agita-se uma cadeira em gonzos e arrastada. Passos pequenos sobre soalho de madeira. Tosse ligeira e pigarreio. Uma porta a abrir-se e o ruído de fora entra no ambiente com mais presença. Os motores dos carros, e um que tanto faz estremecer a janela, veículo pesado, fazendo a curva ali mesmo. A porta fecha-se, sem estrondo. Alguém passará do lado oposto e a afastar-se, pelo som dos passos sobre o cimento, cada vez mais longe, e ainda se consegue ouvir uma voz grave vociferando por um momento e depois calando-se. Nada se altera na paisagem além da janela aqui defronte. Apenas do lado de dentro se testemunhou um abandono.

Já muito depois, quando a escuridão tiver engolido o que é paisagem diurna e todo o ruído, o estore cerrado e nada para se observar depois da janela, o tique taque do relógio da parede será a única companhia de quem irá regressar sentando-se à mesa, tirando do lixo o papel amarrotado na tentativa de alisá-lo e alinhar os seus pedaços como um puzzle. Embora com menor frequência, os motores na estrada continuarão a ser ouvidos, conseguindo ainda fazer vibrar a janela. A luz fraca de um candeeiro iluminará o que lhe está próximo, mas transformando as paredes em sombras disformes. Um isqueiro acenderá um cigarro. Outros papéis sobre a mesa farão a diferença. Não estão cá neste momento, serão trazidos no regresso. Não vamos precisar do sonoplasta, vamos assumir que nenhum outro ruído poderá ser escutado para além do relógio da parede, a brasa do cigarro consumindo o tabaco, o sopro do fumo, e o som dos papéis manuseados. Num deles, com a luz trémula da lâmpada quase a fundir, poder-se-á ler, grafado em caracteres oficiais de diagnóstico, «perturbação obsessiva compulsiva». Será insone a próxima noite.

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