côdeas



Poroso como o calcário que se desgasta, de arestas rombas, tudo feito de resignações vulgares. O mundo esboroando o pedaço que falta, na agilidade do vento e das chuvas sem que para tal tenha de soprar sequer uma brisa ou farrapos de uma simples morrinha inconstante, o mundo só por si erode, alia-se ao tempo 

(o mundo e o tempo um só?) 

e numa lentidão de aborrecimento transformam a dureza sólida da pedra em sucessivos e cada vez mais longos mantos de areia, pó do que existiu, do que resistiu, mas, de resignação em resignação, se foi transformando no que era antes de se haver de si. 

A vida assim se transforma 

(alguns argumentam que evolui, ou será o contrário?) 

e, a dado momento, como o pedaço de carcaça de um pão de vésperas esquecidas, esboroado em côdea, essa que do todo é a que vai resistindo 

(ou não desistindo por completo), 

a vida feita e sentida como côdeas do pão em definitivo feito migalhas grotescas, restos ressequidos que os velhos atiram à água verde de um lago para os patos, gansos e cisnes preguiçosos entre o limo, entre as rémiges também esquecidas de vésperas que já lá vão, a boiar, orgulhoso lixo a boiar, e eu 

(a vida, a vida), 

a vida um corpo insólito a boiar à mercê do parco movimento da água nodosa de verde contra a lama das margens, uma angústia por tanta inércia, a vir cobrindo-se pelo colorido de morte das folhas do outono. 

De modo que esqueçam lá isso da idade signo de conquistas, e que as rugas tanta dignidade, como se fosse verdade essa vossa crença de que fica sempre tudo bem, o que interessa é o espírito manter-se jovem. E, afinal, onde esse espírito senão acomodado em sombras e em vãos de esquinas; que é do espírito na frente de um espelho a tomar consciência da decrepitude? Crença no fingimento, e no dizer de lugares-comuns politicamente correctos. O politicamente correcto é por si um côdea, dura e já bolorenta. 

Ponham-se de pé até tombarem definitivamente. Aí reside a dignidade, e também a resignação.

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