segunda-feira

Andrea Kiss - www.facebook.com/andreakissartist

Ninguém sabe. Só eu a sinto. E senti-la é não saber exactamente quem sou, como sou, e o porquê. Não o porquê da minha existência, mas o porquê do meu sofrimento. O porquê de me sentir assim, sem nada para que possa apontar

– Sinto-me doente

e, no entanto, é assim que me sinto, doente, mas do quê, não sei. Creio que tudo terá começado naquela nefasta segunda-feira, como todas as segundas-feiras são nefastas, as pessoas abrem a boca de tédio e suspiram

– Amanhã é segunda-feira

como se a segunda-feira fosse o dia do suplício. Mergulham nos seus sofás coçados pela tarde mole e sonolenta de domingo, perdidos no vazio dos ridículos programas de televisão, ou dos filmes de segunda categoria repetidos ciclicamente, intervalados por enxurradas de publicidade, fazendo-os sonhar com ideias fúteis. E esperam como répteis que as horas concretizem a segunda-feira, a nova semana de lavores e irritações que se inicia.

Não foi isso, ou não foi por isso, que em mim tudo começou, naquela nefasta segunda-feira de Novembro. Foi a dor que não senti, da perda do meu pai, expirando eram duas da tarde o seu último sopro de vida, preso aos lençóis da cama lavada de fresco, entubado pelo nariz e enfraldado como os bebés. Para ele não havia razões para afirmar

– Sinto-me doente

pois nele tudo era visível, o soro, as aberturas no abdómen para escoar os líquidos que não retinha, a algália… o peito magro revelando as costelas, e o batimento cardíaco cada vez mais acelerado à medida que as injecções de morfina iam sendo aumentadas, para que se não prolongasse o seu sofrimento. Foram os intestinos, rebeldes, que o mataram, desfaziam-se como o papel de um guardanapo humedecido, eram enfim bocados do intestino desfeito que lhe saíam pelos drenos feitos na barriga. Eu não sabia ou não queria compreender como uma doença pode acabar repentinamente com uma vida num espaço de meses. Julguei que apenas dizendo

– Sinto-me doente

se pudesse recorrer aos médicos, aos hospitais, aos cirurgiões que dizem esforçar-se para fazer terríveis milagres quando os doentes entram, terminais, divagando

– Só se lembram de santa bárbara quando troveja

como se a questão da vida fosse uma possibilidade climática qualquer acometida pelas forças sobrenaturais. Afinal não basta anunciar-nos doentes para que possamos ser salvos, quer pelas mezinhas da avó, quer pelas curas milagrosas e esforçadas da ciência médica…

Não chorei em qualquer altura do acto fúnebre, nem antes nem depois, estivesse só ou acompanhada, ao passo que outros familiares, a maior parte deles nem sequer muito chegados, tias irmãs do meu pai que socorriam ao cadáver histéricas, aos berros,

– Eras o mais novo e foste o primeiro a partir

familiares que nem uma única visita lhe fizeram no hospital, ou em casa enquanto o meu pai aguardava que o seu último suspiro o levasse para lá da hipocrisia terrena.

Foi assim durante muito tempo, durante anos, sofria calada para mim mesma, não querendo aceitar que a morte me tivesse afectado, desprezava-a tanto que nunca acreditei nela, apenas sentia a dor da saudade física do meu pai, da sua voz, e tentava convencer-me que nunca mais o veria, como se tivesse empreendido uma viagem longa e interminável.

Outras coisas se foram passando comigo, agruras da vida, mas nada de especial, nenhuma desgraça, nenhuma dificuldade de maior, para uma rapariga que acabava de sair da adolescência órfã de pai e com uma mãe que se encolerizava com tudo e todos, como se tudo e todos tivessem culpa da morte que os intestinos do meu pai lhe deram.

Foram desilusões, que todas as pessoas normais têm ao longo da sua vida sem que por isso tivessem de alertar

– Sinto-me doente

a vida empurra-nos para a frente, seja qual for a qualidade do caminho, é sempre em frente que caminhamos, sem termos tempo para olhar para trás e fazer alguma coisa que devia ter sido feita; o mundo corre e nós corremos com ele, e quando nos lembramos

– Só se lembram de santa bárbara quando troveja

o sangue pica-nos nos olhos e bate-nos nas têmporas, a alertar, devias ter feito isto, esqueceste-te daquilo. Nunca emendamos as coisas más que passam por nós e nos fazem desviar do caminho menos acidentado. Foi isso que me foi acontecendo, desde que o meu pai morreu, desde que o Luís me deixou para se dedicar aos estudos na Alemanha e ter aparecido cinco anos mais tarde, casado com um fulana alta, branca e esguia, segurando pela mão um rapazito franzino com a mesma tez e um cabelo clarinho que me lembro de ver nas gravuras dos contos infantis, com os traços latinos do meu ex-namorado, que, como vim a saber pouco tempo depois, nunca fora para a Alemanha estudar, mas sim trabalhar levando consigo a esguia mulher que já trazia no ventre a semente da sua então traição ao amor que me jurara.

Empreguei-me numa loja de pronto-a-vestir, certificada por uma marca multinacional, e que me fez perder lentamente o sonho de um dia me licenciar em gestão empresarial, pois o meu sonho era ter uma empresa minha, enriquecer, tomar o poder, e talvez a minha sede de começar a trabalhar fosse por isso, embora a razão principal tivesse sido esquecer o Luís e não ter que aturar todo o dia as tempestivas pragas da minha mãe contra o mundo, pendurada ela num domingo eterno, no sofá roçado lá de casa, sem razão para suspirar

– Amanhã é segunda-feira

porque para ela todos os dias eram fatídicos, todos os dias ela travava a sua luta feroz contra os seus moinhos, capaz de envergonhar qualquer dom Quixote…

Foi nesse emprego que conheci o Álvaro, gerente da loja, que engraçou comigo desde o primeiro dia, e me bajulava com almoços e jantares no shopping, entre fatias de pizza e hambúrgueres indigestos. Deixei-me levar pela conversa dele, como se o amor fosse um produto de venda, e lá me convenceu a levar-me para a cama, onde me atirou com todos os seus ossos, de tão magro que era, e tão desajeitado. Foi uma noite inesquecível, os ossos embrulhando-se no meu corpo que ele não parava de elogiar, e naquela confusão contundente em que o esqueleto dele me triturava o corpo de dores, e sem sentir algum prazer, creio ter chorado pela primeira vez desde que o meu pai partira da cama para debaixo da terra, desde que o Luís fugiu para a Alemanha com uma família nova na bagagem, desde que a minha mãe explodiu de vez e teve se ser internada num hospital psiquiátrico agravada com uma trombose que lhe tolheu a língua praguejadora.

O Álvaro convencidíssimo que eram lágrimas de alegria, lágrimas pelo amor e pelo prazer que se convencia encher-me, mas nem sequer o seu membro sumido, como se de um outro osso se tratasse, me enchia o espaço abandonado e dorido do meu colo, de modo que, talvez por pena, de mim ou dele, já nem sei bem, acabei por concordar com ele, que era o amor da minha vida e mais feliz eu não podia sentir-me.

Apenas um ano bastou para que eu deixasse de me preocupar com a canseira de todas as segundas-feiras fatídicas das gentes que trabalham, a loja não dava os lucros orçados pela empresa e fechou, ficando eu sem emprego, e o monte de ossos de malas aviadas para a capital, aceitando a gerência de uma loja que entretanto abrira, com promessas de cartas, telefonemas e de visitas que nunca se concretizaram.

Seis meses passaram onde pelo meio aconteceu a morte da minha mãe que, para ser sincera, não me lembro como foi, porque foi e quando foi. Seria talvez motivo de me sentir desamparada de todo, mas não o senti, a minha vontade era fugir para longe, tentar ser eu outra vez num outro lugar qualquer, livrar-me da vergonha do que tinha sido até então.

Consegui novo emprego num escritório de advogados, e no meio da barafunda de processos, polícias e ladrões me tenho aguentado. No entanto, nada em mim mudou. Continuo a sentir a dor dos ossos do Álvaro, a ausência fria do Luís, atordoada com as tempestades levantadas pela minha mãe, mesmo depois de morta e enterrada há dois anos.

Sinto-me assim, e ninguém sabe. Alguém balbuciou certa vez a palavra depressão, mas quis rir-me, e não me convenci. É uma dor, que não sei de onde vem, talvez sejam os intestinos a invadir-me o cérebro, convencidos que se desfazem como papel húmido, talvez sinta a necessidade de visitar o frio da Alemanha e levar pela mão as feições latinas do Luís na tez branca e russa de um rapazito, ou ainda talvez seja algum osso do Álvaro que ele tenha deixado dentro de mim como recordação. Mas doença não é, não sei de onde vem, senão prostrava-me frente à televisão de domingo, no sofá já rasgado de tanta canseira, à espera que a segunda-feira nasça no relógio e eu esclareça a quem me possa ouvir

– Sinto-me doente.

*

[recuperado de um texto escrito em Outubro de 2004]

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