desce a tarde em dezembro

foto de Pietro Morello, via Fotograficamente


Desce a tarde em dezembro. Precipitaram-se as horas e o pardo das nuvens cedeu lugar à iluminação convulsa da cidade. Ruídos longínquos dos cães latindo, o ronronar dos automóveis sobre o asfalto molhado, uma palpitação urbana com a sensação de não haver humanidade no ruído, e por isso silêncio. Beberico um copo de uísque a propósito de um conforto pateta, sacudindo a solidão com o tilintar das pedras de gelo. Não saí, não vieste, não estás, não vou.

Ontem foram os teus olhos, secretamente guardando-me da noite e dos seus avanços imprudentes, enquanto caía a chuva como se um dilúvio, ou algo assim tão imensamente grave e tão profundamente medonho para que razões não me sobrassem de querer diminuir a distância de ti.

E fui dos teus olhos para as tuas mãos calmas, ternas, cuidadoras: um abrigo. Num murmúrio ininteligível de lábios porque o pudor, porque eles que não sabem, porque assim concordamos que seria. Tu ao meu lado com o mundo caducando à volta. Eles aflitos e nós em paz, a desenhar sorrisos com o pulsar do sangue.

Queria fugir dos lugares-comuns, dos clichés líricos, da verborreia bacoca. Queria um verso simples e amplo para dizer de ti. Porém são tão parcas, feias, dúbias, deselegantes e insignificantes as palavras contigo.

Demoras?
Se eu pudesse, escrever-te-ia um poema tão bonito como o último olhar que me lançaste, antes de fazeres aquela curva em marcha lenta.*

Porque, deste lado, é o olhar que já diz tudo. E tu sabes.

* de Teresa Coutinho

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