o livro nas mãos

(Kelly Brook)


Tenho o livro nas mãos, mas não o leio: serve-me apenas como pretexto – um álibi, posso dizer – para olhar de soslaio as pessoas que vão chegando à praia. Com os pés remexo a areia, procurando a frescura nos grãos mais húmidos, como forma de aliviar o calor que já se sente embora sejam ainda umas nove horas da manhã.

Estou de costas voltadas para o mar, não é o que me interessa, tão pouco que o sol abrase a minha pele lavada de branco

(se nasci assim, porque quererei ter outra cor?)

a minha pele lavada de branco cuja pelugem espessa e escura atenua ou esconde a característica leitosa. O guarda-sol abre a sua sombra como árvore frondosa e acolhe ambos a mim e à minha mãe.

A mamã trouxe uma revista para se distrair. Ela vai à água, e unta-se dos óleos para o sol, e tenta arrastar-me para o mesmo, mas eu não cedo. Traz-me à praia argumentando que tenho de sair, mudar de ares, largar um pouco o teclado e o monitor do computador lá de casa com que passo a maior parte do meu tempo livre, ou quando não estou a trabalhar.

Aborrecia-me de morte se fosse uma saída às compras, no shopping da zona. Renovar o stock dos meus pólos, das minhas camisas, das calças vincadas. É um tédio: vestir, provar as peças, a troca de palavras entre a minha mãe e as meninas das lojas palpitando a subida da bainha, o ajuste de uma perneira, ou a cor da camisola que combine melhor comigo, enquanto me olho com uma expressão amarga nos múltiplos espelhos das cabines de prova, ali assim, pateticamente à mercê delas.

Nos meses quentes, quando a minha mãe me convence a sair do quarto para fazer uma manhã de praia já me agrada mais, e poupo nos resmungos, embora para mim seja sempre entediante, porque os calções já estão fora de moda, que são muito compridos, se quero a sande com fiambre ou queijo ou mista, se prefiro um sumo ou um iogurte, decide tu mamã, isso que me importa?

De soslaio observo as gentes que se vão estendendo no areal, com as suas toalhas, os seus guarda-sóis, tapa-vento, lancheiras, mais os baldinhos de construções na areia que os putos tanto adoram e que até à adolescência a minha mãe sempre fez questão de me fazer acompanhar. De soslaio vou dedicando a minha atenção, roubada ao livro que só tenho como pretexto, aos corpos que se vão despindo, exibindo o que na maior parte do tempo escondem escrupulosamente durante o resto do ano. Barrigas proeminentes, traseiros abundantes e seios descaídos nas mulheres que passaram o tempo da sua formosura

(ou quando a gordura era formosura)

com a pele das coxas sombreada pelas marcas das varizes e da celulite, mas

(e cá está a razão do livro como pretexto)

são as esbeltas cinturas, os traseiros delineados como corações, as coxas torneadas, os bustos firmes e proporcionais, os cabelos doirados e a pele suave como os frutos de verão que observo com maior cuidado, surpresa e timidez. Baixo imediatamente os olhos quando uma delas me descobre a observá-la, e então o enredo do livro que finjo ler torna-se repentinamente deveras interessante, e folheio as páginas como um ávido leitor, obviamente que nunca interessado na leitura, nem sei que letras ou palavras ou frases ali estão impressas, apenas revejo a fugaz troca de olhares, o corpo tão delicado e ao mesmo tempo tão provocante, ali ao vivo diante de mim, tão diferente como quando as vejo na Internet, pela televisão ou nas fotos das revistas com que a minha mãe se distrai, está ali como que à mercê de um toque das minhas mãos, dos meus dedos longos, a curva do biquini na anca, o arredondado dos seios que saltam, quase nus, e o triangulo que me provoca as mais delirantes fantasias.

Quando já passado algum tempo retiro os olhos da falsa leitura e finjo despertado por um ruído qualquer que me obrigue a levantar a cabeça, procuro novamente os corpos, tendo o cuidado para que nem elas nem a minha mãe descubram as minhas intenções. Só por isto gosto de vir à praia. Na vizinhança ninguém se fala, ninguém se vê, embora por vezes espreite pela janela as entradas e saídas da vizinha da frente, mais nova de todas, embora casada e com um filho já. Na pequena carpintaria onde trabalho também não há mulheres, só a dona Olinda, a guarda-livros, com a idade mais ou menos da minha mãe, e muito galhofeira para o meu gosto, e nem sempre lá está. Raramente aparece acompanhada da filha, mas não me desperta qualquer interesse. Demasiado branca, magra, cabelo escorrido e comprido, os olhos esbugalhados atrás de uns óculos ridículos…

Lá vem ela da água. Se soubesse nadar e não tivesse assim tanto frio

(vou molhar os pés empurrado pela minha mãe e quase só toco na água com as pontas dos dedos dos pés, arrepio-me todo, faça o calor que fizer, nunca mergulhei)

talvez fosse muito mais excitante vê-las de mais perto, apesar da minha ridícula timidez

(diz-me a mamã que tenho o feitio de um tio meu, não me fala do meu pai, esse não sei quem ele era).

E nestes pensamentos, quase nem reparava no espectáculo que se desenvolvia bem à minha frente: ela tirou a parte de cima do biquini, deixando cair, assim suavemente, os seus seios redondinhos. Transpirando de embaraço e excitação, volto atabalhoadamente ao livro, mas com o entusiasmo deixo-o cair no chão, uma brisa folheia algumas páginas soprando a areia para dentro. A minha mãe ralha-me pelo descuido

(olha que assim estragas o livro que o teu padrinho te deu)

mas nem ligo ao que me diz. Sacudo a areia, abro numa página qualquer e finjo-me uma vez mais numa leitura cuidada, com breves e curtas olhadelas à rapariga semi-nua que se vai virando na sua toalha de praia, procurando a melhor posição. Cresço dentro de mim. Mais uma vez a minha mãe vai estranhar a minha demora na casa de banho, logo, quando regressarmos a casa, do estranho silêncio quando digo que fui para o duche.

(estás bem, filho? despacha-te, vá, que também quero ir aí)

Mas agora queria muito que a manhã não acabasse tão depressa.

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