pseudo-aforismos de fim de ano (ou: mais um textinho antes que o ano acabe.)

Lá vem chuva, por Myriam Vilas Boas - Flickr


A ladainha da chuva num ritmo de conta gotas teimoso a reverberar as últimas horas do ano. Chegado o inverno, as geadas, o nevoeiro e a neve anulam qualquer aroma de terra, mas eis que se renova ao fim de cada solstício, deixando devagar que medrem as ervas daninhas, mais viçosas agora que nos dias prolongados do verão. As sementes ficam no seu limbo a afastar a ideia que a morte é um acto definitivo.

No hemisfério de cá chove e faz frio, um tom plúmbeo enche as tardes como que madrugadas antecipadas, e a iluminação pública não espera, por exemplo, que se deixe os pratos limpos do almoço. Os dias mais pequenos, e o tempo que parece célere. O céu assim pardo reflecte o cansaço do mundo nesta latitude. Não são só os noticiários com as medidas de austeridade de um governo político perante uma crise financeira os únicos a contribuir para o ambiente mais pesado de uma quadra pretensiosamente feliz e iluminada. Na verdade, e pelo que nos é dado a observar, até parece que esse factor está a passar ao lado da maioria, salvo algumas misérias que já as telhas não conseguem esconder muito. E quanto a isto, fica a incerteza de colocar aqui qual dos advérbios: feliz ou infelizmente. Passe a incerteza dos bolsos dos que vivem no nosso rectângulo territorial, o que me parece é que cada vez mais, e de ano para ano, tudo se vem tornando ainda mais cinza que a pedra granítica ao norte ou mais amarelo e gasto que o purgado da desertificação a sul. As grandes cidades erguem bandeirolas de impérios de betão, vidro e tráfico conjugados com a febre consumista que muito intriga a quem se dá ao trabalho de analisar que estamos num fosso financeiro.

A minha observação constata que o peso do ar pardo das tardes invernosas se agrava no olhar das pessoas que se cruzam inquirindo aos seus botões se o seu umbigo estará mais ou menos satisfeito, colocando a boca torta que não se sabe se é prenúncio de enfermidade grave ou apenas um sorriso amargo. Sem querer fazer analogias tolas e fora do contexto sobre os acidentes graves que assolam as nossas estradas, as pessoas atropelam-se, chocam, capotam, esmagam-se, fazem enfim das tripas coração para agradar a esse semi-deus que quer soltar amarras para dominar o mundo completa e definitivamente. Descansem os crentes das fábulas supersticiosas do rei do mal, pois satanás, coitado, nada tem que ver com o assunto. Essa entidade meio divina, meio humana, mas tão velha quanto o mundo, que vem cada vez ganhando mais força e autonomia, é o umbigo que cada um carrega consigo. Para onde os olhos, encerrados entre palas como os jumentos, só conseguem enxergar.

É fim de ano, e o calendário é apenas mais um signo como tantos outros que as sociedades humanas foram inventando e adaptando aos seus interesses. De forma natural os anos completariam o seu ciclo no advento de cada primavera. Deviam ser os equinócios a cortar os anos em dois semestres e não os solstícios. Pela simples razão que, a cada solstício de verão tudo amadurece, e a cada solstício de inverno tudo apodrece. Não só as coisas as que nos habituamos de chamar da natureza como as nossas próprias cabeças. O ser humano devia hibernar como outros mamíferos, e apenas laborar nos meses em que se renasce e se retoma a viçosidade (esta palavra não existe), para que resultados mais positivos fossem apanágio da nossa espécie. E mal as acções começassem a dar sinais de amadurecimento, antes que caísse o bom fruto no apodrecimento precoce, adormeceríamos até que a neve voltasse a derreter, quatro ou cinco meses depois. No mínimo, era uma poupança efectiva de energia e dos recursos naturais.

Finda o ano, dizia, e os dias esgotam-se sem luz natural às quatro horas da tarde. E anoitecendo o frio, entristece-se a alma. Não se esgotam, porém, as longas filas de trânsito. De onde vêm, para onde vão todas estas pessoas? Esgoto-me ao entrar em casa. Tem momentos que o que gostaria de fazer era aterrar no sofá e passar por uma espécie de coma benigno, despertando para sacudir os músculos e sorver um café quando nascesse uma magnífica e esplendorosa manhã. Limpa e clara.

Nada disto era suposto: não a ladainha da chuva como signo – mais um – a separar ano velho de ano novo. Tudo agora é assim porque ao termos inventado o relógio já nada tem outro significado que não seja a certeza que o tempo passa, e pesa. Hoje, dezembro e inverno neste hemisfério. Que interessa, se é verão do outro lado do mundo?

Isto disse eu. Mas não sei muito bem por e para quê. É o ano que se esvai, e a cabeça e o engenho não estão nos seus melhores dias. Passem bem de um dia para o outro, com essa vantagem mágica de que a diferença de um segundo faz acontecer esquecermos um ano que passou – sempre mau – e de outro que começa, tradicionalmente cheio de esperança.


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