acentuado arrefecimento nocturno

Im Nebel der Nacht, por Michael Sturm em PhotoFrontal

Irrita-me ter a consciência de que o tempo se vai esgotando, num compasso que a princípio parecia tão lento que julgara que a era que hoje vivo quase nunca seria vindoura, para depois o ritmo acelerar tanto ao ponto de eu não ter a certeza de ter dado conta das estações e dos meses, e de me admirar se já é noite quando ainda há pouco despertava bocejando o sono da madrugada anterior. É verdade que me concedeu atingir um certo grau de maturidade e com isso um maior conhecimento de mim mesmo, dos outros e das coisas de que são feitas o mundo, mas aborrece-me que tenha o tempo essa liberdade tirana de ir passando sem me dizer onde foi, onde está e para onde vai, principalmente porque me leva arrastado consigo.

Não lhe dou confiança e vou esquecendo-me da idade que tenho. É um falso pressuposto para continuar emocionalmente equilibrado, mas sinto que devo lutar minimamente contra os abusos e feridas que as crises existenciais provocam, ainda que esteja a enganar-me e tenha o subconsciente alerta nesse sentido. Na verdade, atingir o ponto exacto da metade da esperança média de vida que as estatísticas oficiais nos oferecem, e reflectir sobre tal é como acordar a meio de uma ponte sem saber para qual dos lados seguir. Em frente é o caminho, apontam-me, e vão alertando-me que recuar até seria aprazível mas as leis físicas tanto quanto as conhecemos não nos possibilitam tal aventura. E recuar ainda podia ser fatal, já que ao longo da vida nunca percorremos rectas sem desvios, bem pelo contrário, e tantas foram já as barreiras e os obstáculos que duvido se não se tornariam ainda mais difíceis de transpor num caminho feito ao revés. Porém, atingir a metade do nosso tempo e seguir em frente é tomar uma tal dose de angústia e expectativa que podemos até continuar o caminho com ânimo e força, se a saúde não faltar, mas o certo é que seguimos tão intoxicados e tão nefastos de dúvidas que o melhor é enganar as ideias e fazer de conta que não sabemos nada disso do tempo que flui.

Cruel mesmo é quando não nos deixamos enganar por nós próprios, ou seja, não nos concedermos essa boutade de ser-se humano: esquecer simplesmente o tempo, e fingir sermos, nesse campo, irracionais. Contra esse tirano do tempo ainda temos uma arma poderosa que é a tragicomédia do suicídio existencial. Tão simples: barramos o tempo na precisa altura em que queremos cristalizar a imagem do que somos, passando para o lado dos que foram. Continuará o tempo a rir-se de nós, apontando-nos infelizes, condenando-nos ao passado, mas segue já de tal modo cheio de raiva que semeia o esquecimento nas mentes dos que ficam como os únicos que nos podem preservar essa eternidade a partir do momento em que decidimos ser apenas até onde chegamos. O tempo é como uma geada, queima tudo. E esquecendo ou acabando aqueles que nos conheceram em vida, morremos então definitivamente.

Não vou pois por aí. É preferível dar o braço a torcer e ver o que lá vem, sem cuidar muito de me preocupar. O tempo tem também alguns rasgos de misericórdia e concede-nos um pouco mais do seu espaço por vezes, nós é que nunca conseguimos prevê-lo. O malvado ainda se diverte:

- Vês como valeu a pena não me teres deixado?

Por isso vou continuar, esmorecendo a irritação e, sim, sem dar muita importância a esse delírio do universo. Já basta ter entrado numa fase de declínio após ter alcançado o pico mais alto da minha existência. Na descida também há frutos para recolher. Batalhas por vencer, louros a receber. E quem sabe uma apoteótica recepção na meta. O arrefecimento vai tornar-se acentuado, vou notá-lo, como quando caminhamos nas primeiras noites de outono, mas convém não esquecer que sou eu, somos nós. Ainda que levados pelo tempo somos sempre nós, os donos de nós mesmos.

Comentários

Teresa Brandão disse…
O que eu dava para ter este blogue dentro de um livro, assim para folhear e ler quando me apetecesse, em qualquer lado e em qualquer altura!
Anónimo disse…
estive a ler-te com toda a atenção e duvido que já tenhas chegado ao ponto mais alto da tua vida, alexandre. porque o tempo há-de trazer-te inúmeros momentos de realização. e as palavras também. um grande beijinho.
Carlos Ramos disse…
A mesma qualidade de sempre.
Por cada morte uma ressurreição
Aí vêm o Outono
Amen

Abraço
Anónimo disse…
hmm, biba.

delírios mais velados