papoilas




Lembro-me sim do dia em que choraste por me veres ao colo da mãe, aliás

o dia em que meu filho me perguntou se eu ainda gostava dele, pobre menino, de olhar desesperado

não me lembro, a mãe é que o conta vezes sem fim e a minha memória são das palavras dela, do sorriso distante com que as diz, por isso posso também dizer que me lembro muito bem de ti, não só pelas fotografias, mas pelo que és dentro da casa que habitei estes anos todos, uma casa

quis o pai porque pensou que eu o havia abandonado, e dou às vezes por mim a divagar como uma criança de apenas três anos tinha a sensibilidade de chegar a tanto, se bem que as crianças percebem tudo, pelo menos é o que dizem e eu

uma casa isolada num campo verde onde o sol sobe e desce como se só àquele lugar viesse a trazer a sua infinita luz, afinal era o que é hoje o meu mundo, tudo o que sou, tudo o que devo, a bela casa de pedra com janelas brancas e jardins repletos das cores das flores, o perfume dos dias quentes e o frio dos ventos quando fazia inverno e chovia

eu tão nervosa que nem cheguei a perceber bem porquê, afinal trazia-te a tua irmã ao colo, sei que

essa casa onde habitam as tuas brincadeiras, quando mais crescidos levavas-me a ver o pequeno regato que em Abril se enchia de pequenas colherezinhas que me ensinaste serem os girinos das rãs que faziam a sinfonia dos fins de tarde em que nos entretínhamos a escutar no silêncio e no guinchar do velho baloiço onde que me empurravas para não me sentir triste

eu não sabia bem ao certo se teria sido a melhor decisão, mas longe de mim imaginar que o meu filho se sentisse ameaçado

de modo que as minhas recordações giram em volta da tua pessoa, e por isso posso dizer que me lembro, lembro-me pois, o dia em que eu cheguei no colo da mãe e te escondeste porque me achavas um intruso, alguém que te invadia o espaço, e eu tão inocente quanto as papoilas que cresciam selvagens e belas pelo campo fora e que tu adoravas, tão serena e apaziguadora como os pássaros que voavam sobre nós e se recolhiam num chilreio orquestral no grande choupal que tu tanto gostavas de assistir, agarrada à mãe com medo e com vertigens, com medo dos quartos escuros

mas tudo passou, a maneira como depois acolheste a tua irmã recém chegada com abraços e beijos

tu nunca antes estiveste num quarto escuro, num espaço opaco sem afecto, sim também me lembro, também me lembro, garanto-te que me lembro bem de todas as luzes apagadas e eu sozinha.

o meu filho tinha um bonito coração e uma maneira tão dele de ver e sentir as coisas, um jeito tão dele de amar

Perdoa-me. É injusto dizer-te isto. Tu melhor que eu sabes o que é isso do vazio, da escuridão. Perdoa-me.

amavas a tua irmã mesmo vindo a saber mais tarde que ela não tinha nascido de mim como tu nasceste, que o pai e a mãe a fomos buscar a um orfanato onde era infeliz, onde partilhava a infelicidade parda e solitária com outros meninos como tu, mais velhos, mais novos

Do que me não lembro foi como partiste. Levaram-me para uma pequena casa entre outras pequenas casas, junto de uma ponte que atravessava um rio barrento e recordo-me, agora como se de uma fotografia, de olhar a rua íngreme esperando te ver pela mão da mãe e do pai, enquanto uma senhora de uma certa idade conversava com uma vizinha segredando eu ser sua sobrinha emprestada e eu sem entender nada, apenas esperava

onde isso lá vai, nem sei como tive coragem de dizer à minha filha o segredo da sua existência, segredo mantido durante anos com a cumplicidade do pai e do irmão, para garantir a sua felicidade... como somos ingénuos a lidar com as crianças...

e esperando passaram-se alguns dias até que

até que um dia tive de lhe contar

olhei a rua íngreme onde uma gaivota pegava num pedaço de pão seco com o seu bico amarelo e sorri quando vi o pai a acenar, e logo atrás, muito abatida, a mãe, vestida de um negro que não era vulgar

só não sei qual foi a parte mais dolorosa, desde aí a minha filha não falava tanto, deixava-se ficar sentada agarrada no baloiço tão parado quanto o seu olhar fitando o nada

um negro que me repudiava, que me levava ao quarto escuro e à solidão fria das camas corridas entre quatro paredes onde numa delas repousava uma cruz

eu nunca mais fui a mesma, talvez não tenha sido uma boa mãe, talvez nada do que ela esperasse que eu fosse, ou fizesse. Apenas deixei de ser

sim, eu sei, só me lembrei dessa fila de camas quando quis saber de onde vim há pouco tempo, mas sabes, é como se tudo o que se passou comigo, desde o nascer de um ventre que nunca vi até à tua partida, fosse em mim tão claro como se tivesse consciência e memória de todas as coisas que me revelaram.

deixei de ser quando o meu filho partiu

A mãe vive numa angústia de não ter sido uma boa mãe, mas ela não sabe, ou tenta querer não saber, esquecer-se que sabe, que foi e é a melhor mãe do mundo, não só porque me quis para ela, mas porque te tinha a ti já, e contigo pude conhecer um mundo

quando partiste, meu filho, eu deixei de ser

um mundo que embora à tua medida de criança que nunca deixaste de ser, foi o melhor de todos o mundos. Sim eu lembro-me de que choraste quando eu apareci na tua vida e agora sou eu que choro porque desapareceste tu da minha

com algumas papoilas enfeito a tua morada

e agora só me ouves de um quarto escuro que ainda não entendo e tenho pavor.

diz-me, meu filho, se gostas muito da tua querida mãe...




___________________________________________________________________________
texto adaptado como crónica a partir de excerto do esboço de romance A Presença de Édipo, de 2003, inacabado

Comentários

Olá

lindo blog... boa quinta-feira.
Passa pelo meu.
Beijinhos

delírios mais velados