malabarista


Observa como me sustenho de braços abertos feito gaivota com cuidados de malabarista de circo sobre o fino rebordo do copo do uísque onde não me importa nada cair, perdido o equilíbrio e as estribeiras. Um passo em frente, braços continuamente abertos, dois passinhos mais, e num soluço ansioso o pé direito resvala e cá estou eu a afogar-me num mar de malte. Que interessa andar na corda bamba entre a incerteza de viver e resvalar no abismo? A esperança? Esse lamaçal esverdeado que te obriga todos os dias a levantar da cama com um sorriso nos lábios fazendo-te ignorar os compromissos que te asfixiam, a vida que levas e que julgaras sempre rejeitar?

Repara como os espelhos não te veneram, estão sempre aquém (ou além) do que pensas quem e como és. Guardamos na memória um restolho de vida que nos apetecia, mas vê lá tu, os dias minguaram sem que déssemos por tal, aliás, como em muitos outros momentos, constatar que as coisas mudam lentamente é um processo da nossa natureza de tempo interior que rejeitamos constantemente: não só as estações alteram, os filhos também crescem quando nos parecia que ainda há dias eram crianças ingénuas

(perdão? quem é ingénuo?)

agarradas ao biberão, choramingando os instintos da fome e da defecação.

Quando sentimos que nos falta alguma coisa (ou que algo se perdeu numa mudança irreversível) é que realmente percebemos que o tempo corre. Que até, afinal, tem qualquer coisa de ser vivo: um útero cósmico que nos resguarda distraídos até à morte, e que então nos poderá mostrar, findas as amarras umbilicais, o que nunca acreditáramos que nos mostravam os espelhos.

Pena é que no interior desse umbigo não sejamos resguardados dos nossos próprios actos e, por isso, quero lá saber se me afogo em sucessivos uísques ou que o mundo não poderá acabar nunca enquanto sobre tempo

- Ainda vais a tempo, pá!

para fazermos qualquer coisa pela nossa vida. Observa: sou uma ave com ares de malabarista desengonçando os braços no rebordo do copo. Quem se interessa uma peva por mim?

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