chuvas claras

foto de Aleksandr Zacarukhin



Não sei começar sem ti. O cigarro esvai-se na longa espera e são apenas minutos escassos desde o cilindro branco à beata esmagada entre os flocos de cinza. Estendo os olhos para te procurar com maior perspicácia, recolho o crepúsculo repetido e perco a brancura do papel. Repousa a esferográfica. Vem de dentro da noite um grave silêncio, como se fosse extensão de ti no telefone inútil de tão mudo.

E como uma fotografia vã, esbatida porque o tempo nos relógios, porque as manhãs erguidas e as noites insones, redescubro-te num brilho. Do toque da saliva na polpa dos dedos, na carne do sexo. Queria muito o músculo da tua língua debatendo-se contra a gana do meu desejo.

Não estás cá: são traiçoeiras as ilusões, bicho danado o sonho, o delírio. Quase que sentia as tuas coxas nos meus braços. Quase te cheirava o odor bravo de fêmea aflita. E a boca fremindo, os olhos cegando com a fúria dos dentes, o gemido das vozes. Fico como que sangrando derretido e viscoso dentro da minha roupa interior, afagado pelos lençóis, e a madrugada desnorteando as sombras na parede, vindo a morrer devagarinho com o brilho implume do sol.

Sentado na cama, acordado: não sei começar sem ti. E fico assim, esperando-te no ar límpido das manhãs, com a permuta das chuvas claras de março. À procura sempre desse toque de saliva com que me acariciavas o despertar.

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