inominável



Com os dentes aguçados à porta da tarde, fervia-lhe o corpo de sedes, cansado de apontar com o bico do nariz a tez amarelecida do tecto de muitos cigarros. Todo o rosto dentes desdenhando num esgar convulsivo o silêncio povoado daquela insanidade dos humores da carne. Lençóis duplamente dobrados sobre o peito enxovalhados nas pontas e um pé branco procurando como se folha viçosa alguma da frescura percorrendo as frestas bolorentas. Sabia que era assim o fim de tudo. Como quando ouvia em miúdo falar do fim dos tempos, do colapso do mundo: ele era o fim dos tempos, o colapso de tudo que poderia chamar mundo.

Alguém ali perto sentado numa cadeira a sofrer de uma esperança impaciente, dirá que estava a rir-se, com tantos dentes aguçando de desdém. E tamborilava os dedos sobre a perna esquerda a magicar baterias e concertos, enquanto o pé desnudado e branco, imobilizado pelo tempo da demora. O mundo sempre foi uma coisa demorada. A cadeira velava na ingenuidade o acto de apodrecer, do primeiro segundo antes do verão.

Já não estava ali, afinal. Acabava com o mundo de olhos vidrados para o tecto fumado. E com os dentes aguçados, como se de novo raiz procurando na terra a seiva para ser outra vez.

A cadeira de repente vazia, levantadas as dúvidas sobre se o pé sentiria alguma frescura. As dobras dos lençóis aliviadas. A tarde finda de lilases com nuvens passeando a curiosidade dos céus. Do silêncio, burburinho. Subindo ao ritmo dos segundos.

E nada. Nada. Já não era nada. Apenas o objecto tridimensional representando um rosto de dentes lavrando raivas antigas, de nariz apontando a anedota do mundo sob os tectos. Do cinzeiro, repousando na mesa-de-cabeceira, talvez seguindo também a ideia apocalíptica da sua existência, não nasceriam fios azulados a esbater a brancura do fim. Do tecto. Ou o tecto sendo esse fim. O fim do mundo no tecto.

E mais nada. Porque a morte é inominável.

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