dignidade

foto de Natalia Klih


Apesar de tudo portámo-nos com uma dignidade de felizes criaturas. O nosso porte elegante, sempre à altura de qualquer acontecimento, cheio de honestidade e simpatia. Eu diria mesmo que uma postura altiva, mas alegre e bonacheirona nos dias mais. Nos dias menos a roçar o sensaborão, com alguma inocuidade. Ainda que assim seja, dias mais ou menos, estamos sempre prontos. Para tudo.

Escorre o sol quente pela escadaria abaixo e no varandim prostrámo-nos como jarras de montra a exibir essa felicidade inventada. Ou não inventada: adquirida com a dignidade. Os automóveis passam indiferentes, mas as pessoas que surgem na esquina onde o carvalho ergue uma respeitável sombra de frescura, de passo estugado, viram os olhos para cima questionando-nos o porte, nós os dois sentados como príncipes de um qualquer reino de conto de fadas. As pessoas abrandam, não sabemos se pelo sol que abrasa a tarde e amolece os corpos, se pelo espanto de nos ver assim, como que surpreendidos por um qualquer espectáculo de rua espontâneo e inesperado.

Também há janelas do lado oposto, quadros de donas-de-casa esbaforidamente ocupadas com lides de limpeza. Fazem pausas inclinadas e apoiadas sobre as vassouras, a entender sorrisos e o significado do que somos aqui, com toda esta dignidade que, percebo agora, torna-se contagiante. Retiram o lenço das cabeças e parecem rejuvenescer com vontade de tanta coisa menos limpar.

Repara então no filho mais novo do vizinho do terceiro esquerdo frente do prédio plantado no outro lado da rua: depois de assomar brevemente à janela, aumentou o volume do som da música que ouve e debruça-se enfim sobre o parapeito como se quisesse acompanhar-nos neste espectáculo de jarros de montra, a demarcar um outro estilo, diferente. Repara que mexe o corpo ao ritmo da música, e as pessoas que passam,

(os automóveis serão sempre defeitos indiferentes nesta caricatura)

estugando o passo ao dobrar a esquina da sombra fresca do carvalho: também lhe acenam, ao rapaz, com o olhar indagando o que significará aquele bailado do corpo, a música berrando por dentro.

É assim mesmo, como disse: há uma dignidade feliz em tudo isto, apesar de como são e vão as coisas terrenas. Apesar do mundo. E os que nos reprovam, os que não nos entendem, e os que nos desprezam: coitadas criaturas essas, que infelizes serão.

Comentários

delírios mais velados