memória do armário


o escritor António Lobo Antunes com uma ano de idade


Nem sempre me foi fácil agradar. Tirava do rosto qualquer sorriso e nesse lugar da boca ou do músculo contraído tecia frases consistentes para impressionar quem passasse.

Eram as margaridas, erguidas ali na terra de um canteiro nascido ao acaso, que me ouviam ou liam da minha boca a articulação das frases supostamente impressionantes… E mesmo que nenhum sinal visível viesse da sua condição vegetal, eu convencia-me de um restolhar de inquietação.

As pessoas, essas, nunca foram como as margaridas que o tempo acabou por afastar.

(o tempo cúmplice? o tempo dominado?)

Não se deixavam impressionar facilmente, muito menos com a minha verborreia de dá-cá-aquela-palha. Exigiam os dentes, mordeduras, talvez algum sangue visível para reconhecerem ali algo, alguém. Pediam sempre a boca suja de sorrisos. E a minha boca, desobedecida de mim e de tudo, permanecia numa quietude de gesso,

(levando o olhar para longe, para uma ausência inventada e só minha)

obstinada em não obedecer ou agradar.

A minha voz nunca quis tais compromissos tácitos.

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